Publicado n'Aplataforma (30.10.13) e na Revista Ciano (vol. 3, n. 1).
Não sabemos quem alguém é antes de ouvirmos a história dos seus feitos. Quem foi André Stolarski? Títulos como o de designer, professor e tradutor não respondem a essa pergunta; tampouco o somatório de qualidades e defeitos. Qualquer estranho poderia partilhar das mesmas características ou reconhecer com facilidade sua modéstia, inteligência e generosidade. Mas quem será um dia capaz de contar a sua história?
Tive a sorte de conviver com o André como seu estagiário na Tecnopop, entre 2005 e 2006, e como designer da equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo desde 2009. Assisti a algumas das suas palestras e cursos; li e discuti em primeira mão alguns dos seus textos. Até hoje, Stolarski foi a pessoa com quem trabalhei por mais tempo. Mantivemos contato até seu falecimento em agosto de 2013, aos 43 anos. A meu ver, sua trajetória profissional levanta questões que dizem respeito a todos que trabalham com projeto.
Amigos e familiares podem confirmar: a vida de André Stolarski foi pautada pelo trabalho. Ele se dedicou integralmente aos projetos dos quais participou. Pode-se mesmo dizer que suas únicas atividades paralelas eram outros projetos; assim ele encarava suas falas e seus escritos. Para ele, um projeto – como quase tudo – era um arranjo particular entre condições de trabalho, prazos e pessoas. Ele lidava com essas variáveis com a ajuda não apenas das suas habilidades inatas, mas também de uma série de técnicas. André não era apenas excepcionalmente talentoso; ele se disciplinou.
Stolarski desenhou, mais do que qualquer outra coisa, processos e estruturas de trabalho. Ele também não subestimou a importância dos recursos e das ferramentas para o sucesso dos projetos. Essas preocupações nasceram da consciência de que um projeto bem-sucedido não é uma espécie de milagre, mas o resultado de um processo bem conduzido. Sua sensibilidade a essas condições o obrigou, portanto, a se debruçar sobre as questões de metodologia e gerenciamento. A fixação com esses problemas era consequência menos de uma obsessão e mais de uma visão antecipada dos males de um processo descuidado.
Mas André não protegeu apenas o futuro dos projetos. Suas equipes tinham um quê de sagrado. O controle mantido sobre as condições de trabalho visava não apenas à diminuição das chances de fracasso dos projetos, mas também à preservação das pessoas. Eventualmente ele “blindava” suas equipes contra a sobrecarga de tarefas. Essa atitude rara na indústria cultural brasileira permitiu que elas fossem estáveis, bem como rentáveis. André conciliava os limites individuais com as demandas de trabalho, esperando o melhor de cada um dos seus colaboradores, sem o exigir. Com intuito de evitar qualquer tipo de exploração, ele aplicou seus métodos de trabalho contra os possíveis abusos de poder.
Stolarski guardou o mesmo respeito pelos tempos dos projetos. Tinha dificuldade em conceber algo que não tivesse data para terminar, mas, por outro lado, a experiência adquirida com os anos de projetos simultâneos permitiu que ele imaginasse cenários futuros em toda sua complexidade. Essa forma de clarividência o levou a concluir que “todo projeto dá errado” e que não há nada de catastrófico nisso. Mediante uma prática que se alimentava dessa experiência crescente, Stolarski descobriu que um projeto não é um caminho estreito e seguro – cujo destino é a implementação de um plano elaborado de acordo com algumas intenções –, mas um campo de possibilidades que exige um trabalho constante de imaginação, pois não se sabe onde vai chegar. Essa prática reflexiva demonstrou que, independente de qualquer vontade declarada, todo projeto vagueia nesse campo. Nesse sentido, André foi um pragmático que guiou suas ações em função dos resultados possíveis a cada vicissitude de projeto, e não de um ideal de sucesso. Ele aprendeu a se adaptar a esse caos de eventos imprevisíveis onde os projetos nascem, vivem e morrem chamado “mundo real”.
Sua outra descoberta diz respeito às tensões internas aos projetos, fruto das diferenças pessoais. Por reconhecer a diversidade de agentes envolvidos, Stolarski não desprezou a contribuição nem o risco oferecido pelas subjetividades. Para evitar que os choques de personalidade estagnassem os processos, ele desenvolveu habilidades diplomáticas. Defendendo os projetos dos conflitos insolúveis de opinião, sua retórica ganhou fama. Além de convencer, ele era capaz de comprometer com o projeto aqueles que estavam apenas envolvidos a uma distância segura. Contudo, Stolarski defendeu os projetos dentro dos limites impostos pelos agentes dominantes, sem questionar sua legitimidade. Ele “dançava a dança” – como costumava dizer –, sem a pretensão de mudá-la.
A quantidade e qualidade dos projetos não dependeu só das suas habilidades e dos seus métodos, mas também das relações que ele manteve com todos a sua volta. Stolarski cultivou o compromisso com os projetos não somente em momentos de dificuldade. De fato, um compromisso generalizado e incondicional sempre se manifestou de início, e o nome dessa manifestação é confiança. André confiava. Como uma atmosfera, essa confiança contaminava todos que se aproximavam dele. Nela, a despeito de todas as probabilidades, mais coisas poderiam simplesmente acontecer.
Na sua trajetória profissional Stolarski apostou no que há de incerto: no possível, no subjetivo, no futuro. Ele viveu em paz com o acaso e a imprevisibilidade: sem mágoas, sem inimigos, sem medo. Ele aprendeu a tirar partido dos acidentes de percurso e, ao final, sua vida se transformou num projeto em andamento. Com seu humor irônico, André teria encarado sua própria morte como um simples contratempo no curso dos projetos. Suas realizações foram o início de uma história que não podemos contar, porque ainda não se passou. Não conhecemos a dimensão do seu legado, pois ele continua em construção com as pessoas que herdaram seu trabalho.