2019. Select, 2019/06/14.
Cem anos depois do seu surgimento, a escola alemã Bauhaus representa um tempo em que o futuro era passível de ser projetado.
Em 2019 comemoramos o primeiro centenário da Bauhaus. Porém, não cabe mais a nós render-lhe homenagens. Seu lugar na história já está assegurado, ao lado de outros experimentos de vanguarda. Cabe a nós perguntar o que dela nos interessa hoje.
O mundo não é mais o mesmo da escola alemã. A diferença não é apenas cronológica, mas de tempo histórico. A Bauhaus surge no século que se inicia com a Grande Exposição de 1851 e se encerra com a canonização do modernismo nos Estados Unidos da América, a partir dos anos 1930. A escola é uma resposta à crise da arte europeia, advinda do processo de modernização e industrialização da sociedade que culmina na Primeira Guerra Mundial. Contudo, a questão inicial da Bauhaus não é a criação de modelos para a indústria, mas a formação de um novo homem¹ para um novo mundo. A rigor, sua proposta educacional centra-se no indivíduo. Walter Gropius e Johannes Itten pretendem libertar o artista do peso morto das convenções da arte acadêmica e burguesa. Sua primeira orientação é expressionista, e até certo ponto romântica. A contraparte desse individualismo é dada pelo conceito de Bau: a um só tempo o fundamento de uma prática coletiva e o objetivo final de todas as artes. A escola almeja aquela unidade perdida no mundo moderno entre as belas-artes e as artes decorativas, entre arte e vida, entre gosto e moral. Para tanto, ela lança mão de uma nova concepção de ensino e propõe a formação de um novo artista, visando a síntese entre a sua prática individual e um projeto comum de orientação social.
À parte a discussão sobre o sucesso ou o fracasso do experimento, a questão que se impõe é se uma tal proposta ainda tem sentido. Não nos referimos à estrutura curricular ou aos princípios formais desenvolvidos na escola, mas ao seu compromisso com a construção de um novo mundo, ou nas palavras do manifesto, com a nova construção do futuro (dem neuen Bau der Zukunft). O mundo do pós-guerra abalou de tal forma nossa fé em qualquer projeto de natureza social e educacional, que a escola parece-nos agora um exercício de extremo otimismo. E por mais que o problema da produção industrial não tenha se resolvido, a questão da arte industrial já não nomeia mais o nosso problema. Passados os Trinta Anos Dourados do capitalismo, questões de ordem ambiental, social e política combinam-se de tal forma que os novos problemas já não competem exclusivamente a ninguém, muito menos aos artistas.
O mundo que emerge após a Segunda Guerra Mundial é o das grandes organizações. Ele opera de acordo com os princípios da administração e do planejamento. Nele, a arte imaginada pelos bauhausianos já não sustenta sua pretensão de coordenadora geral da produção, em suas acepções moral e estética. No seu lugar surge uma noção mais abstrata e problemática de design, de natureza processual, teorizada entre os anos 1950 e 1960 na Escola de Ulm e pelo Movimento Design Methods. Tal concepção baseia-se na possibilidade de se ensinar métodos universais de resolução de problemas. No limite, considera-se o design uma transdisciplina, compartilhada por diversos profissionais. No início dos anos 1970, são feitas as primeiras formulações acerca de um saber geral do projeto, a ser implementado no currículo básico das escolas inglesas.
No entanto, nenhuma dessas propostas vinga. O nosso século continua a desafiar a prática e o ensino das artes ditas construtivas, bem como o próprio exercício do projeto. No coração dessa dificuldade encontra-se uma perda de confiança no futuro. Trata-se de uma certa desesperança, que se instala no período da Guerra Fria, e cujos efeitos sobre a educação são evidentes. Na medida em que se ocupa dos novos, toda escola tem de criar para si uma imagem do futuro. O educar exprime assim uma crença no mundo e na possibilidade de transformá-lo. Em contraposição às academias de arte do seu tempo, a Bauhaus é o melhor exemplo de um gesto de confiança, face ao horror e à destruição da guerra. Seu objetivo é a reconstrução do mundo, a partir do zero. Mas, com o passar do tempo, esse objetivo tornou-se cada vez mais nebuloso e distante. Em outras palavras, o que mudou foi a própria concepção de futuro. Entramos na era da incerteza², na qual tudo parece escapar à previsão e ao controle.
O que resta então do experimento da Bauhaus? Resta a ousadia de educar para o futuro, tendo em vista o conservadorismo das instituições educacionais e às incertezas do nosso mundo. Como uma escola lançada ao futuro, a Bauhaus é um caso de ensino não apenas progressista, mas também futurista. Reconhecemos nela uma escola do próprio tempo, isto é, do tempo em que o futuro era o principal objeto de nossas preocupações. Nesse sentido, imitar a Bauhaus não é copiar os seus métodos, mas adotar uma atitude semelhante em relação ao porvir. Essa atitude consiste basicamente em questionar tudo aquilo que nos foi legado, incluindo agora o ensino bauhausiano, porque é isso que exige o espírito de modernidade.
A Bauhaus representa um breve momento de esperança, sobre o qual vale a pena nos debruçarmos em nossa busca por novas formas de educação. De lá pra cá, aprendemos que a confiança não se baseia na certeza, senão ao contrário: ele é necessária justamente frente ao futuro contingente. Na sua época, a Bauhaus procurou recolocar o mundo em ordem, apelando para a ideia de construção. Por mais que hoje desconfiemos dessa ideia, herdamos o problema que fora o dela, a saber, o de educar para o desconhecido. E esse é um dos problemas fundamentais da educação, nas palavras da pensadora Hannah Arendt:
Basicamente, estamos sempre educando para um mundo que está fora dos eixos ou que caminha para isso, pois essa é a situação humana básica, na qual o mundo é criado por mãos mortais para servir de lar aos mortais por um tempo limitado. Visto que o mundo é feito por mortais, ele se desgasta; e visto que o mundo transforma continuamente seus habitantes, ele corre o risco de tornar-se tão mortal quanto eles. Para preservá-lo da mortalidade dos seus criadores e habitantes, o mundo deve ser constantemente reordenado. O problema é simplesmente o de educar de tal modo que a reordenação continue a ser efetivamente possível, ainda que ela nunca possa, obviamente, ser assegurada. Nossa esperança depende sempre do novo que cada geração traz; porém, precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, tudo destruímos se tentarmos controlar o novo de tal forma que nós, os velhos, possamos ditar como ele se parecerá.³