Vernaculando. nº 1. 2015.
Na ficcção científica Tron de 1982 programas de computador antropoformizados são repreendidos por sua fé nos usuários. Toda narrativa gira em torno da relação com essas entidades “do outro lado da tela”, que animam a ação das personagens, a ponto de nos perguntarmos ao final do filme, se nós, do lado dos usuários, não estamos em uma situação parecida, à serviço de outras entidades.
À semelhança dos programas dotados de consciência religiosa, nós designers aprendemos a repetir o mantra do usuário. Em nome dessa figura singular, pressuposta às nossas atividades, justificamos nossos projetos. Agimos com a pretensão de satisfazer suas necessidades, sejam elas “do estômago ou da fantasia” (1), pois “o usuário e suas necessidades encontram-se no centro de interesse do designer industrial” (2). Assumimos assim nossa relação íntima com o usuário, sem que nenhum de nós o conheça pessoalmente.
Podemos dizer que o usuário é o ponto de fuga da prática dos designers. Em torno dele e na sua direção se organizam nossos esforços. No sentido indicado por esse ponto prosseguimos com segurança. Até onde, contudo, não sabemos; pois nada impede que, acompanhando as transformações históricas dessas necessidades, o progresso da nossa produção material se estenda ao infinito. Vemos que o usuário se distancia no horizonte à mesma velocidade que nós. Para onde vai? Só o vemos de costas. E, mesmo quando cremos vê-los nitidamente à nossa frente, ignoramos que não se trata de um usuário, mas de um imenso coletivo heterogêneo, reduzido em nossas considerações à unidade em função de um denominador comum. Insistimos nesse erro possivelmente por dois motivos:
Porém, quem está em posição para afirmar a natureza e o fim das necessidades individuais de um coletivo?
Nós designers, contudo, não nos detemos diante de dificuldades desse tipo, talvez em virtude do caráter irrequieto do nosso ofício, que continuamente nos lança à ação. Essa predisposição à atividade irrefletida, por sua vez, traz o risco de uma objetificação das necessidades a serem atendidas. Isto é: instados incessantemente a participar da produção em escala já em andamento, os designers contribuem para que novos produtos criem as necessidades que visam atender. Isso não é senão outra maneira de dizer que “a produção não se limita a fornecer um objeto material à necessidade; fornece ainda uma necessidade ao objeto material” (3).
Agora, ao que concerne a satisfação total e irrestrita das necessidades dos usuários, é preciso reconhecer um atraso; pois antes mesmo que os designers pudessem comprovar a validade desse ponto – tão crucial ao redesenho e desenvolvimento de novos projetos – já a indústria se valia de uma medida para o nível geral de satisfação desse coletivo que chamamos de usuário. Há muito os donos dos meios de produção já contavam simplesmente as vendas dos seus produtos.
O que leva algo tão bem sabido a nos surpreender é o poder que um mantra tem de nos bloquear a compreensão. Ainda hoje nos recusamos a substituir o usuário por uma cifra ou quanta. No entanto, o que há de mais comum entre os usuários, senão o acesso aos mesmos produtos? Feita a correção de que não projetamos para a venda, nem para o usuário identificado pelo valor de troca implicado nesse acesso, mas para uma instância última que batizamos de usuário final, cabe ainda a pergunta: em que difere o usuário do usuário final senão no fato de que, se são pessoas diferentes, o primeiro realiza a troca no lugar ao segundo?
Quando temos em mente o funcionamento de uma economia de escala que cria as necessidades para os seus produtos, somos confrontados com a indiferença entre usuário, usuário final e mero comprador. Logo, a defesa do aspecto derradeiro do “centro de interesse do designer industrial” encontra os ouvidos moucos dos dirigentes dessa economia, se o que está em jogo na produção industrial é a reprodução do “ciclo” (em nada cíclico) (4) de vida dos produtos e serviços, da extração das matérias-primas ao descarte. Assim, prioritária é a investigação dos conceitos que fundamentam esses “ciclos”.
Abordamos aqui apenas um conceito: o de consumo. Não apenas porque a ocasião pede, mas também porque, pressuposto às nossas considerações sobre o usuário qua produto, já estava presente a ideia de consumo. Quando afirmamos que a indústria era capaz de medir a satisfação das necessidades de um coletivo nada mais dizemos que a quantidade de vendas corresponde exatamente à capacidade de um mercado (de usuários, caso queira) de absorver o volume de produção. A essa absorção damos o nome em geral de “consumo”, o que, entre outras coisas, justifica a substituição da figura do usuário ou usuário final pela do consumidor.
Que implicações tem essa substituição para as justificativas dadas à atividade dos designers? Trata-se simplesmente de um ajuste vocabular, agora que o consumidor e suas necessidades “encontram-se no centro do [nosso] interesse”?
Feita a troca de figuras, se esclarecem alguns dos argumentos anteriores:
O que se revela com essa nova compreensão é que o consumismo – como ciclo produtivo que vai de consumo a consumo – retira o papel determinante do uso para dá-lo não ao consumo mesmo – como alegam os economistas que negam o risco de diminuição da taxa de retorno ao capital representado pela queda na taxa de desemprego causada pelo aumento do consumo –, mas à troca.
Assim é que, no sistema capitalista, mediante a predominância (no seio do conceito de valor) do valor de troca sobre o valor de uso (8), pode se dar a total equivalência de todas as mercadorias (9), inclusive a mercadoria trabalho. Em termos práticos, isso significa que o produto ou serviço (e o projeto que o compõe) se realiza no momento da troca e não durante o uso, como fomos ensinados a acreditar. A esse momento de realização também damos o nome de “consumo”, contudo erroneamente, dado que tudo que se segue – incluindo o consumo propriamente dito, o uso ilimitado, o reuso indefinido, o descarte ou a redistribuição – tem pouca ou nenhuma importância para o sistema produtivo que visa a aceleração permanente dos “ciclos” que alimenta a forma de vida do capital.
O momento da troca abreviado como consumo é, portanto, o acabamento ou finish stroke (10) de toda a cadeia produtiva e, por conseguinte, a finalidade de toda prática de projeto no domínio da indústria. O uso é, nessa perspectiva, uma mera possibilidade posterior à troca, que contribui para o “ciclo” produtivo somente enquanto é capaz de estimular outro momento de troca, isto é, de consumo. Desse modo, o uso prolongado (que adia uma nova aquisição) deve ser combatido (11), e o projeto que visa simplesmente o uso, suplantado.
Assim, se o trabalho dos designers para garantir a satisfação das necessidades dos usuários finais é possível apenas enquanto mantém estimulada a propensão ao consumo que garante a reprodução do modo capitalista de produção, por que insistimos em tratar desse trabalho em termos de formas adequadas a usos?
Porque, para dar continuidade ao progresso do capital que engendra a destruição das suas próprias condições de existência – a saber, a vida na Terra como a conhecemos (12) –, é preciso crer em uma causa no mínimo mais nobre. Cumpre assim o mantra do usuário o seu papel ideológico. Parafraseando um diálogo do mesmo filme de 1982, podemos desmentir o argumento de que “users requests are what designers are for”; na verdade “doing […] business is what designers are for.”
Então, se não trabalhamos para o usuário, que posição nós designers ocupamos na cadeia produtiva que mobiliza empresas e mercados em torno do consumo? Tentemos ao menos enumerar as relações possíveis entre designers e seus “usuários finais”:
Apesar da saída oferecida pelo último caso à situação embaraçosa em que nos encontramos – em uma palavra, a condição heteronômica (13) – há um caráter sistêmico no fundamento dessas relações que não pode ser ignorado.
Se o dono da empresa, como designer, dedica todos os seus esforços e recursos à satisfação dos usuários, ele encontra, cedo ou tarde, um limite conjuntural ao seu empreendimento dado pela concorrência. A soma dos custos de desenvolvimento dos melhores projetos com os melhores materiais, tornado possível por pesquisas aprofundadas, é incorporada ao preço dos seus produtos ou serviços e o mantém em desvantagem competitiva. Por mais que esse movimento corresponda a um aumento real de qualidade, a tendência geral entre os concorrentes para aumentar a margem de lucro se traduz no corte dos custos de produção e operação até o limite da percepção de qualidade dos consumidores. Isso indica a necessidade do designer dono do negócio de conciliar intenções conflitantes. Ao fim e ao cabo, por força das circunstâncias e a exemplo dos demais, o designer será obrigado, se quiser sobreviver no sistema econômico em vigor, a pensar primeiramente como dono dos meios de produção, a despeito daquilo que valoriza pessoalmente.
Aos outros designers, indicados nos dois primeiros casos, resta apenas a condição de mão-de-obra. Como trabalhadores autônomos ou assalariados, a dois ou três passos dos seus usuários, os meros designers tem pouca influência sobre as decisões do que produzir, de como produzir, de onde produzir e do que fazer com os lucros (14).
Se nossas considerações até aqui tem algum sentido, é nosso dever imaginar que contribuições os designers podem dar às mudanças que a cada dia se tornam inevitáveis:
Essas três características – visão sistêmica, prática projetiva e senso coletivo – são assunto para novas considerações, a medida em que buscamos na figura do profissional de projeto um poder disruptivo.
Entretanto, para não incorrer nos equívocos provenientes do corporativismo, lembremos da metamorfose permanente das atribuições dentro do sistema produtivo; citemos, apenas para demonstrar brevemente que entre os designers podem figurar pessoas das mais diferentes procedências, o exemplo de Josiah Wedgwood, o businessman que na Inglaterra do século 19 destacou do seu contingente de artesãos um funcionário para se ocupar do design das suas peças de cerâmica neoclássicas (16). Afinal, não é a decisão de por a serviço um projetista uma decisão de projeto? Não enfatizemos demais, portanto, a classe dos projetistas sobre a atividade de projetar.
O que se impõe daqui para frente, se queremos caminhar na direção de uma mudança, é, por um lado, a reabilitação de categorias “anacrônicas” como as de mão-de-obra (que nos permitem pensar a partilha desigual entre capital e trabalho dos frutos do esforço coletivo), e por outro, o reconhecimento das habilidades e ferramentas que podemos empregar contra as forças que mantém em curso a lógica consumista de produção.
Felipe Kaizer é designer gráfico e pesquisador independente. Seus interesses variam da filosofia política a métodos de gerenciamento. Graduou-se pela PUC-Rio em 2006 e participou entre 2009 e 2015 do estabelecimento da equipe interna de comunicação da Fundação Bienal de São Paulo. Co-fundou em 2013 o blog Aplataforma. Recentemente deu início a um fórum de discussão sobre design e trabalho chamado Projeto Comum.