Felipe Kaizer & Priscyla Gomes
Instituto Tomie Ohtake. Arte Atual Festival 2015. Coisas sem nomes.
Os textos a seguir visam explicitar uma série de indagações surgidas durante o processo de desenvolvimento do Arte Atual Festival. As primeiras conversas entre a curadora Priscyla Gomes, o crítico Felipe Kaizer e os artistas Pedro França/Cia Teatral UEINZZ e Luísa Nóbrega geraram rascunhos, correspondências, apontamentos e imagens por meio dos quais se delineou um formato de texto baseado em perguntas, de acordo com as premissas de uma mostra aberta à experimentação e ao acaso. Cada pergunta – escolhida entre inúmeras – suscitou tentativas de resposta por parte da curadora e do crítico. Ao término, a série ilimitada de textos, discorre sobre essas questões a fim de revisar e publicizar o processo de reflexão iniciado meses antes da data de abertura e até hoje inacabado.
Com o intuito de dar continuidade ao projeto Arte Atual, o Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake propôs um novo formato de exposição: o Arte Atual Festival.
A iniciativa, que remete aos festivais de música dos anos 1960 e 1970, estabelece uma equação um tanto desafiadora: uma mostra “em processo”, que se vale de momentos de improviso e de decisões tomadas in loco por curadores e artistas.
Feito o convite, os artistas se lançaram à produção de obras inéditas, tendo em mente o tema do Festival neste ano e o desenvolvimento da exposição. Eles se depararam com a constante mutação de suas obras no espaço expositivo através do acréscimo, supressão e encontro de elementos. Sem o suporte de um desenho expográfico prévio ou da possibilidade de lidar com trabalhos já existentes, a mostra aponta para uma dinâmica incerta e promissora.
Antes, contudo, que assumamos o potencial da dinâmica proposta pela exposição, é preciso recordar o contexto dos festivais, propícios ao surgimento de novos gêneros musicais. Baseadas na lógica da competição e da premiação, essas ocasiões promoviam estratégias de ordem compositiva, que tiravam partido do curto tempo de audição dos jurados, e de técnicas de execução que exploravam ao máximo as reações efusivas do público. Para que fossem eficientes, essas performances eram obrigadas a conciliar aspectos previsíveis e imprevisíveis encontrados no sistema artista-público-juri. Podemos imaginar que os músicos deixassem em aberto uma parcela das suas composições e se perguntassem o que era matéria de ensaio e o que era matéria de improviso.
Se olharmos cuidadosamente para a exposição, talvez reconheçamos uma semelhança entre as estratégias dos artistas convidados e as dos músicos: vemos situações nas quais artistas “compõem” para uma ocasião efêmera, suscetíveis ao julgamento do “público” que visita obras inéditas ou em processo. Talvez sejamos capazes de concluir que o resultado imprevisto dessas ações e reações é análogo ao resultado de um festival de improvisos. À medida que se delimitam os espaços dedicados a cada obra e os artistas revisitam suas proposta iniciais, vêm à tona a maneira como cada um equaciona expectativas pessoais e o risco de uma cacofonia advinda da contraposição de múltiplos elementos.
Em resumo, o Festival almeja uma flexibilidade rara aos ambientes institucionais, se considerarmos que cada artista e curador foram levados a rever expectativas diante das ações dos demais e a participar de um processo nunca totalmente sob controle. O que se oferece nessa ocasião, ao fim, é a abertura das condições de trabalho e dos espaços de tomada de decisão. Porém, dada a institucionalização dos papéis do curador e do artista no sistema das artes, será que a supressão de protocolos de produção e de logística é capaz de promover ou garantir novas criações? Será que as decisões tomadas pelos diversos atores no curso da exposição foram capazes de burlar ou superar as normas em vigor nesse espaço expositivo? Ou será que certos limites não são ainda desejáveis para aqueles cujo mínimo de apresentabilidade continua sendo um fator decisivo para o sucesso de suas produções? Afinal, é possível dar regra ao improviso?
Coisas sem nome nos levam a pensar que existam aquelas que são nomeadas. Mais ainda: chamamos de “coisas” tudo aquilo que normalmente não conseguimos nomear. Deduzimos que há aquelas que, nomeadas, deixam de ser simplesmente “coisas”, para se tornarem, por exemplo, “carro”, “pintura”, “instalação” ou “buraco”. Então, a pergunta por uma coisa sem nome só pode ser feita com a devida propriedade se retrocedermos a um problema anterior: o que é uma coisa?
Essa pergunta é um problema central para a filosofia. No contexto da exposição Arte Atual Festival, cujo subtítulo neste ano é “Coisas sem nomes”, ela está em relação ao que comumente definimos como obra de arte. Vale dizer que, em geral, chamar algo de “coisa” equivale a rebaixar seu status; mas não pretendemos aqui fazer esse julgamento de valor.
O que se diz com esse subtítulo é que a exposição é composta de coisas, como no geral as exposições o são, porém com uma diferença: diz-se que as coisas foram despojadas dos nomes que já tiveram ou são inomináveis. Isso significa que faltam nomes que lhes sejam próprios ou mesmo um nome geral, sob o qual todas as coisas poderiam ser reunidas. Na falta desse nome, as chamamos “coisas”. De outro modo, poderíamos chamá-las de “obras”, na esperança de que isso dissesse o que elas são. O título, no entanto, não pede que pensemos em obras, mas em coisas. Pensamos, então, não apenas no que seriam as coisas que aqui encontramos, mas também no que aconteceria se as chamássemos de “obras”: afinal, uma coisa é uma coisa antes de ser obra? Ou será que uma coisa é uma obra desprovida do seu caráter de obra?
Qualquer que seja o caso, dessas coisas não podemos falar senão de maneira vaga. Ainda assim, nos dispomos a falar de coisas sem nome; falamos porque ao menos estamos na sua presença. Confiamos que, falando ou silenciando, as coisas permanecem as mesmas, nos seus lugares. E, por uma estranha analogia, vemos que as coisas se fazem assim presentes independentemente da nossa vontade. Assim é que, na medida em que desafiam nossa capacidade de falar e se impõem à nossa presença, as coisas ganham vida. Vemos que são elas, as coisas, que falam ou silenciam; que são elas quem nos olham em primeiro lugar.
Logo, como permanecemos sob o olhar das coisas? O que nos resta fazer se ficamos sem nomes para lhes dar? Encontramo-nos em um impasse: reconhecemos ao nosso redor coisas que diferem das coisas cotidianas, sem que possamos sequer identificar o estatuto dessa diferença. Invocamos assim, inadvertidamente, um critério quando queremos distinguir as meras coisas (sem nomes) das coisas “normais”: dizemos que as coisas no geral têm ou não alguma utilidade; que são úteis ou inúteis. Para o senso comum, as coisas normais (que têm seus devidos nomes) são normais enquanto simplesmente funcionam, em meio às nossas atividades ordinárias, sem despertar nossa atenção para o que realmente são.
Esse paradoxo – de que as coisas “normais” são aquelas das quais mais dependemos para fazer o que fazemos e, no entanto, as que menos se fazem notar – é recorrente nos escritos do filósofo alemão Martin Heidegger. Sob a denominação “o utensílio”, é possível conceituar a simultânea proximidade e imperceptibilidade dessas coisas. A determinação do que seja utensílio aparece também em um dos textos centrais ao desenvolvimento do pensamento de Heidegger, A origem da obra de arte, publicado em 1950.
No desenrolar desse texto há uma alternância entre as ideias de “coisa”, “utensílio” e “obra”, do qual aproveitamos para a nossa breve investigação somente a dificuldade para determinar o que seja a mera coisa. Após uma longa digressão em torno dessa tríade, Heidegger conclui que o conceito de coisa obstrui o entendimento do que é uma obra de arte. Como prosseguir, portanto, se “o caráter de coisa na obra não deve ser negado nem deixado de lado”? Talvez uma exposição como esta, na qual as coisas se expõem imediatamente, ofereça uma saída a esse impasse.
O que a pergunta pelo sentido do título propõe é que se pense que as coisas aqui não são coisas por estarem fora ou à margem dos gêneros (como pintura, escultura ou performance), mas sim por serem meras coisas antes de serem obras. Dizemos com isso que “obras” são apenas casos especiais das coisas; casos aos quais, na falta de nomes que coloquem as coisas sob controle, damos a alcunha genérica de “obra de arte”. O acontecimento da obra, por assim dizer, nada mais é do que um acontecimento possível da coisa. O caráter de coisa que antecede a própria obra é o que nos permite experimentar a abertura vertiginosa que por raras vezes experimentamos junto às coisas. Pois não é na proximidade de qualquer obra que estamos “repentinamente em outro lugar diferente do que habitualmente costumamos estar”.
Não é à toa que uma pergunta tão simples ofereça tantas dificuldades. Se queremos nos demorar junto àquilo para o qual não podemos dar nome, à espera de que algo se apresente a nós em seus próprios termos, precisamos nos desvencilhar das forças que nos encerram à cega habitualidade.
Ao adentrarmos à exposição, um amontoado de imagens no fundo sala nos salta aos olhos. Não sabemos se nos aproximamos ou se nos afastamos. Somos, ao mesmo tempo, convidados e intimidados pela sua presença. Intrigados, nos vemos tomados de assalto por inúmeras questões: Há alguma ordem que levou o artista a dispor desse modo seu trabalho? Por que alguns elementos estão no chão e outros na parede? Podemos pisar neles ao caminhar ou trocá-los de lugar? Como essas coisas ganharam tal forma?
Essas são perguntas para as quais não existem respostas únicas. As coisas podem e não podem ser trocadas de lugar; o artista decidiu e não decidiu colocá-las desse jeito; elas estão e não estão dispostas de forma definitiva. Podemos evitar pisar sobre suas imagens, porém muito provavelmente sem sucesso. Estamos convidados a habitar aquele espaço, mas podemos visá-lo de fora, à distância, como uma obra a ser preservada.
Ao que tudo indica, os painéis, impressões, pôsteres e desenhos poderiam adotar outra forma. De fato, isso aconteceu inúmeras vezes. Pequenas transposições desencadearam uma sequência de permutações que deram origem a novos conjuntos e novas formas de apreensão. A possibilidade das coisas encontrarem outros lugares ainda permanece alta. Mas, antes de tratarmos das mudanças pelas quais passa o trabalho, vale retomarmos uma pergunta anterior: que coisas são essas?
Desde de 2013, o artista Pedro França colabora com a Cia Teatral UEINZZ. Além da participação em peças e da criação de elementos de cena, França iniciou uma série de registros dos integrantes do grupo em ação durante ensaios e apresentações do espetáculo Cais (ou Caos) de Ovelhas. Manipulados digitalmente, esses registros originaram novas imagens, que receberam intervenções em grafite e tinta acrílica, aplicações em tecido e colagens de diversos tipos. De maneira análoga, o vídeo em exposição é o resultado de uma conjugação entre a filmagem da janela do quarto de hotel do artista e a narração feita pelo ator Colazzi na Escócia, onde o grupo se apresentava.
Um conjunto tão heterogêneo de coisas previa inicialmente a construção de um painel no espaço expositivo que pudesse recebê-lo. Tal plano se estendeu até poucas semanas antes da montagem, quando então um rearranjo das peças no espaço do ateliê implicou uma nova configuração: os painéis maiores se destacaram da parede, a presença física das peças criou percursos, os retratos passaram a fazer frente aos seus espectadores, a escala corpórea ressaltou as feições, frágeis apoios revelaram o verso dos desenhos.
O momento a seguir do trabalho se deu no primeiro dia de montagem. Com todas as peças e estruturas à mão, o artista reconfigurou a forma inicial encontrada no ateliê, em negociação com a grande curva no fim da sala. Dispondo as imagens no chão, nas paredes e no verso desses elementos autoportantes, o trabalho se estabilizou nos dois primeiros dias.
Porém, com a visita da Cia Teatral UEINZZ no terceiro dia de montagem, tudo se transformou. Numa ação prolongada por horas de maneira improvisada – e tal como já ocorria em ensaios –, as coisas criadas por França foram manipuladas livremente pelos atores. Esse “uso” dos retratos deu nova vida ao trabalho: a partir da ação do grupo, problemas de ordem meramente compositiva deram lugar a uma experiência ainda inconclusa e indefinida.
Essa configuração, contudo, continuou passível de intervenção nos dias posteriores à abertura da exposição. Assim como o grupo, os visitantes puderam ver, entrar e tocar nas coisas, até que, mais uma vez, a estabilidade do trabalho se perdeu. Novas configurações deram outro aspecto às estruturas criadas e, nesse processo de surgimento de uma nova forma, o trabalho de França permaneceu em aberto.
O público, entretanto, mesmo desavisado do histórico dessas mudanças, pôde evidenciar diante de qualquer um desses estados a presença de alguma intencionalidade em meio ao caos. Essa evidência foi o que levou a série inicial de perguntas que não pode ser ignorada. Como é possível essa percepção? Como o caos guarda ainda algum sinal de ordem e propósito?
O trabalho de Pedro França e da Cia Teatral UEINZZ nos oferece a ocasião para refletir sobre como gestos e atitudes dão origem às formas, a despeito da preocupação com a autoria de cada movimento. Ao fim, os visitantes são levados ao mesmo impasse que animou e anima a ação dos artistas: as coisas como se encontram não poderiam ser simplesmente diferentes? O que nos impede de lhes dar uma nova forma?
É possível que sua chegada tenha sido silenciosa, que tenha enveredado pelo espaço expositivo sem entender o porquê de um microfone ali, logo na entrada; sem perceber que, ao fundo, na penumbra, uma série de gravadores se alinham sobre a mesa. Talvez este texto o leve ao canto da sala, a olhar de perto aquela mesa, a se sentar de costas para a exposição, a estabelecer contato com o trabalho de Luísa Nóbrega.
Também é possível que tenha sido um ruído, um som estrondoso que o tenha convidado a se aproximar, a tentar compreender como surge, quem fala, de onde vêm tais sons. O que se ouve, em cada uma dessas situações, é a voz da artista. Essa voz está presente nas cinco fitas cassete dispostas nos gravadores; está presente no sistema de áudio toda vez que a artista utiliza o microfone aberto.
As cinco fitas sobre a mesa são o resultado de gravações acumulativas realizadas durante os cinco dias de montagem, em uma gradação que vai da fala articulada a gemidos, chios e rangidos. As performances executadas junto ao microfone explicitam a incongruência permanente entre a matéria e os sons produzidos pelo corpo.
Luísa explora as fronteiras entre o ruído e a linguagem. O conjunto de técnicas advindas da sua formação como atriz é capaz de fazer do aparelho vocal o lócus de um acontecimento corpóreo e cênico. Suas ações concebem a voz não apenas como expressão, como articulação da palavra, tampouco a colocam à serviço da clareza narrativa. A profusão de palavras, a repetição desmesurada e a supressão das pausas rompem intencionalmente com as expectativas do público. À medida que Luísa abdica do papel semântico da oralidade, acompanhamos intrigados os caminhos por onde suas ações nos levam.
Se nada nesses sons se oferece imediatamente ao entendimento, se não se sabe ao certo o que é dito e o que é grunhido, podemos ao menos conhecer sua origem?
O que ganha corpo com os gestos de Luísa é algo de incompreensível. O que a artista traz à tona com sua presença e suas gravações não é algo determinado, ao qual possamos dar um nome. Tal como o subtítulo da exposição indica, o que é dito nas performances gravadas e ao vivo é alguma coisa para a qual não temos palavras e diante da qual nos falha a linguagem. Suas tentativas são para dar forma a alguma coisa que continuamos sem conhecer.
Ainda assim, permanecemos à espreita numa cumplicidade silenciosa com esses trabalhos, que chiam e silenciam; que berram e se contorcem. Permanecemos porque, de alguma forma, sabemos que essas coisas incompreensíveis ainda nos dizem respeito, afinal o que não se dá à nossa compreensão é justamente o que mais diretamente nos fala. Suspeitamos daquilo que ouvimos e de onde isso vem: será que algo a mais se acumula nas fitas junto com a voz da artista?
A obra de Luísa Nóbrega, portanto, trafega entre duas regiões. De um lado, a artista nutre uma relação íntima com o inefável que independe da atenção alheia e que não tem ocasião certa para se manifestar, a ponto de turvar a distinção entre performance e vida diária. De outro lado, Luísa domina com maestria as condições materiais do seu trabalho e mantém o controle sobre o que o público ouve e vê. A oscilação entre essas duas disposições produz uma multiplicidade de sentidos e vale ao fim como estratégia para revelar a indeterminação dessas "coisas".
Somos convidados a participar desses constantes deslocamentos, mas com a condição de que creiamos de antemão naquilo que brota dessa região primeira e que anima os esforços da artista. Precisamos pactuar com a obra para acompanhar seu descortinamento; precisamos nos dispor a escutar. Em acordo com o inexprimível no trabalho de Luísa Nóbrega, tal como no mito da Odisseia, nos atamos ao mastro para suportar a sobrevinda do seu canto.