Uma conversa com Felipe Kaizer

Algumas perguntas e respostas a partir do texto ‘Beyond the Ability to Respond’.

Gustavo Ferreira & Felipe Kaizer

Revista Ciano

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GF: No texto ‘Beyond the Ability to Respond’, você analisa a dimensão política da atividade de design, e introduz uma noção de política como ação, baseada na obra da pensadora alemã Hannah Arendt.

Qual é a história deste texto? O que te levou a escrevê-lo?

FK: De certa forma ele é uma revisão de um trabalho maior chamado ‘Design Ex Machina’, que apresentei no final da minha graduação em 2006. Resumindo, ele aponta somente um dos problemas encontrados no meu trabalho sobre a dimensão política do design: a lógica dos meios-pelos-fins intrínseca ao argumento do design-por-uma-causa.

Eu criei a oportunidade para escrevê-lo quando descobri o site ‘Design Philosophy Politics’. Basicamente eu me convidei para participar do editorial da Anne-Marie Willis. Mas o que me levou a escrevê-lo foi a necessidade de tornar rapidamente entendível um dos pontos principais da minha pesquisa – por isso o artigo é mais instrutivo e mais provocativo do que a minha monografia. Nos anos entre esses dois textos aprendi bastante sobre o modo como designers e arquitetos pensam, sobretudo por causa de um grupo de estudo que mantive com amigos. Descobri, naquele contexto, que apresentar as ideias através dos autores não funciona. Por isso, nesse artigo eu começo por noções muito básicas – presentes já em conversas cotidianas –, e continuo em direção aos problemas mais fundamentais, de carácter filosófico.

GF: Mas a sua graduação foi em design gráfico, certo? E mesmo assim você escolheu trabalhar com a ‘razão pura’, e produziu uma longa argumentação racional na forma de um texto.

Por que você escolheu esse formato para comunicar as suas idéias? Por que não usar ilustrações, imagens em movimento ou sons, por exemplo? O que é especial e único em relação ao formato texto?

FK: Curiosamente você já colocou ‘texto’ entre outros meios, sem nenhum privilégio. Isso é um bom começo. Talvez eu pudesse defender o meu ponto através de outra mídia, mas, considerando que “o meio é a mensagem”, isso seria defender outro ponto. Eu concordo com você que escrever foi uma opção, entretanto eu não acredito que há uma diferença entre fazer algo e pensar sobre o que é feito – a argumentação racional também é uma ação. Mesmo pintura, por exemplo, “è cosa mentale”.

A graduação em design gráfico deveria não só aceitar a escrita como meio, mas também encorajar em todas as ocasiões o uso da ‘razão pura’. Afinal, qual é o princípio fundamental da Universidade?

GF: Pode-se argumentar (como muitos o fazem) que o design não pertence à Universidade, e sim às oficinas e aos ateliês; que está mais próximo do artesanato e da produção manual do que das ciências. (A diferença: a produção manual pode se amparar em regras prontas e hipóteses, enquanto a ciência por definição requer verificação empírica.) Essa discussão – ‘o design é Arte ou Ciência?’ – parece continuar indefinidamente em um loop infinito, pois o design não se enquadra nessas definições e separações.

Em uma conversa anterior, você estava me contando que prefere usar o termo ‘designing’ ou ‘projeto’ ao invés de ‘design’. Isso é para indicar que design é uma dimensão essencial de tudo o que fazemos? Que o ‘projetar’ (designing) é tão fundamental quanto o ‘pensar’ ou o ‘comunicar’? Ou, parafraseando Descartes e Watzlawick: ‘Projeto logo existo.’ / ‘Não podemos não projetar.’?

FK: Eu não iria tão longe a ponto de dizer que projetar é tão fundamental assim para nossa existência – algo como ‘só sou enquanto projeto’. É óbvio que existem outras formas de ser. Mais modestamente, é possível dizer que o projeto tem uma lógica própria, que torna inapropriada a pergunta sobre se ele é Arte ou Ciência. Ou, como argumentou Herbert Simon, se o design é uma ciência, então ele é radicalmente diferente das ciências naturais – assim ele defendia o design como ciência do artificial. De qualquer forma, o que está em jogo é o propósito de uma atividade humana que não é simplesmente teórica. Hegel disse que “tudo o que é humano só o é na medida em que o pensamento está aí em ação”.

É a questão da educação, então, que acompanha a redefinição do projeto como atividade autônoma. A primeira lição, provavelmente, é reconhecer a diferença que você indicou: ‘design’ pode ser ambíguo, significando ora uma atividade profissional ora uma disciplina, enquanto ‘projeto’ (designing) é apenas uma forma de agir. Portanto, mesmo que nós neguemos a presença do design nas nossas universidades como uma disciplina, ainda assim nós podemos discutir o projeto em si. Para além de qualquer erudição, nós somos necessariamente parte de uma comunidade de seres racionais, que fazem uso público da razão – isso está no coração do Iluminismo. O público não é o mercado, nem a escola.

GF: O design/projeto é restrito à humanidade? De que forma a atividade humana e as coisas produzidas pelo homem são diferentes daquelas produzidas por outras espécies?

Autores como Edgar Morin e Maturana & Varela parecem ter argumentado na direção oposta, desenvolvendo teorias sobre a humanidade a partir dos mundos físico e biológico.

Uma teoria não-antropocêntrica do design/projeto é possível, ou desejável?

FK: Como teoria ela já é “humana, demasiada humana”. Não há, estritamente falando, como tratar da natureza de um ponto-de-vista absolutamente neutro – sempre existe interesse no discurso. ‘Realidade’ independente de qualquer artifício humano é uma contradição, assim como ‘natureza’ é um conceito derivado das nossas atividades.

Nesse sentido eu diria que o design é o oposto dos processos encontrados em sistemas autopoiéticos. Mesmo que o gene tenha aparecido por acaso, nossas cidades são ainda assim consequência dos nossos atos. Imaginar que existe um mecanismo histórico ou biológico que se manifesta em nossas ações é muito perigoso. Se não há escolha, não há ação.

Mesmo que a autopoiesis seja a causa da autonomia, a última supera a primeira por meio da sua própria atividade. Autonomia é o processo de se relacionar consigo mesmo, a despeito da origem desse processo. O filho não está completamente contido no pai. Se estivesse, jamais haveria qualquer novidade.

GF: A autonomia do ser humano está portanto no centro da sua definição de design. Isso é muito bom. E me leva a mais uma pergunta:

Como designers, precisamos balancear nossa autonomia individual com a daqueles que nos contratam, e com a de seus clientes. Esse processo, como você indicou no artigo, é essencialmente político e complexo.

É comum entre os profissionais de design igualar ‘servir o cliente’ com ‘abrir mão da autonomia para conduzir o projeto’. Isso leva a uma instrumentalização do design e dos designers por outras áreas (em particular marketing, propaganda e economia).

Ao mesmo tempo, há um amplo entendimento e uma aceitação por parte da sociedade, de que autonomia individual é essencial para as Artes. A ponto de ser tentador para os designers re-enquadrar o próprio trabalho como ‘arte’, em busca de maior autonomia.

Gostaria de ouvir o que você pensa sobre as relações entre arte, design e autonomia. Quais as suas estratégias pessoais para trazer mais autonomia para a sua prática de design? É por esse motivo que você escreve?

FK: Fica claro com a filosofia arendtiana que não existe algo como autonomia individual. A liberdade não é negativa. Isto é: liberdade não é apenas aquela para fazer tudo aquilo que não vai contra a liberdade de outrem. Nossa ações acontecem na pluralidade. As pessoas pensam e reagem de maneiras diferentes, do contrário elas seriam versões da mesma pessoa – nós precisamos aceitar essa condição se vamos projetar. Nesse sentido, afirmar que existe uma diferença fundamental entre designers e clientes é encarar a questão de forma corporativista: o designer, como especialista cuja expertise é inquestionável, deve então ser obedecido cegamente. Ou, simetricamente, a opinião do cliente é sempre a verdade, e ao designer resta apenas a execução das decisões das quais não participou.

No entanto, o projetar não é exclusividade de uma profissão. Muitas pessoas projetam com frequência, apesar de não serem consideradas designers. Na verdade é errôneo perguntar quem é o responsável pelo projeto – o seu cliente está projetando junto com você. Trata-se essencialmente de um esforço coletivo, com muitas dimensões. Uma grande amigo meu, João Doria, uma vez falou “o projeto aconteceu porque aconteceu um encontro”. Não deveríamos nos preocupar com um equilíbrio de forças ou com a igualdade de direitos; o projeto não é um campo de batalha. E a arte não é um campo de refugiados para os derrotados. Muito menos uma propriedade privada.

Talvez uma imprecisão no conceito de autonomia já esteja presente no Arts & Crafts: arquitetos e designers se comportavam como se o resto do mundo precisassem de paladinos da beleza. Mas será que nós podemos definir ‘beleza’ objetivamente? Sob que autoridade atestamos a funcionalidade de alguma coisa? Existe uma classe especial de pessoas para quem o Bom se manifesta puramente, cientificamente? Existe ‘o mais belo’ ou ‘o mais adequado’? Além disso tudo, lembremos que autonomia não é autoria, e que nós não podemos esperar recompensas ou aplausos. Autonomia é o livre exercício entre pares.

Eu estou mais interessado em entender as preocupações dos outros. Como projetista eu preciso ser capaz de ouvir, mas também de julgar. Não posso apenas responder às demandas dos outros; eu preciso também compartilhar a minha visão do projeto. É um processo sem garantias. O risco de fracassar está sempre presente, e tudo bem. Eu devo confiar nas pessoas com as quais eu trabalho, a despeito dos títulos e das posições. Na prática, é melhor desconfiar daqueles que constantemente mostram as credenciais – concorda? Considerar a si mesmo nada além de um profissional é incorrer em má-fé. Cada passo, cada caso, pode ser reavaliado politicamente: ‘Vale a pena? Por que não desistir agora? Podemos mudar o curso dos nossos planos? Podemos tomar novas decisões?’

Comparado a isso, escrever pode ser uma atividade extremamente solitária. Mas eu posso compartilhar o que eu escrevo: isto não é apenas pensamento. E eu posso falar sobre o que escrevi. No final das contas, eu estou tentando me fazer entender diante de um público. E justamente por tentar, conversas como esta eventualmente surgem.