Uma proposta de base de dados sobre o Centro Universitário Maria Antonia

Felipe Kaizer


Artigo científico produzido para o 8º fórum de Pesquisa FAU-Mackenzie em outubro de 2013.

Resumo: Artigo sobre o trabalho de conclusão homônimo do curso Design e Humanidade no Centro Universitário Maria Antonia, Universidade de São Paulo, em 2013. Contém breves considerações acerca de política, história e design a partir da experiência pessoal de desenvolvimento de uma base de dados sobre a história do Centro. Aborda também os impactos sobre as noções tradicionais de projeto causados pelas novas formas de agenciamento massivo presentes atualmente em estruturas de informação infinitamente expansíveis. Palavras-chave: design; projeto; política; história; São Paulo

Abstract: Article about the homonymous conclusion work of the Design e Humanidade course in the Centro Universitário Maria Antonia, Universidade de São Paulo in 2013. It contains brief considerations about politics, history and design according to a personal experience gained while designing a database about the history of the Centro. It also reflects upon the impact over the traditional notions of design caused by the new forms of massive collaborations found today in infinitely expandable information structures. Key words: design; project; politics; history; Sao Paolo

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Espera-se que todos os trabalhos neste fórum sirvam como exemplos daquilo que se chamou no seu programa de “agenciamento”. Peço então licença para apresentar um trabalho que até agora só intenciona um agenciamento, tendo em vista que, na proposta descrita a seguir, a “articulação, montagem, acoplamento, conjunção e conexão de elementos e processos diferenciados” existem apenas em potência. Isto é: se o começo do projeto em questão se deu com a minha curiosidade e dedicação, sua continuidade dependerá inteiramente do engajamento e interesse de novos agentes.

Trato aqui de “Uma proposta de base de dados sobre o Centro Universitário Maria Antonia”, que apresentei na conclusão da terceira edição do curso “Design e Humanidade” oferecido no mesmo centro, em maio de 2013. Pretendo, em primeiro lugar, narrar minhas motivações e os rumos que dei ao trabalho; em segundo lugar, descrever as características principais da base de dados proposta; e, em terceiro lugar, especular sobre o que possivelmente significa projetar hoje.


A proposta de base de dados começou em 29 de março de 2012. Nesse dia houve uma manifestação popular em frente ao Clube Militar no Rio de Janeiro contra a comemoração da “Revolução de 1964” por parte de alguns oficiais aposentados. Após terem sido dispersados pela polícia, os manifestantes retornaram à noite ao mesmo local e projetaram esta imagem sobre o Clube: o jornalista assassinado, Vladimir Herzog (fig. 1).

Figura 1: Projeção de Vladimir Herzog enforcado sobre o Clube Militar no Rio de Janeiro. Autor desconhecido.

Ao rever essa imagem nesse contexto, tive a estranha sensação de que a via pela primeira vez. Levei um choque. Acredito que o efeito sobre mim não teria sido o mesmo se não fosse aquela projeção sobre aquele prédio naquele dia. Pouco depois de tal episódio no Rio de Janeiro, comecei a imaginar que efeito teria sobre os frequentadores da rua Maria Antonia a imagem do mesmo Herzog projetada sobre a fachada da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). Não causaria a imagem sobre o Centro Universitário Maria Antonia uma impressão tão ou mais perturbadora do que sobre o Clube Militar, dada a sua história de conflitos em 1968? Por outro lado, já não é a fachada do edifício Joaquim Nabuco, até hoje deteriorada após esses conflitos, uma imagem por si só suficientemente perturbadora (fig. 2)?

Figura 2: Fachada do edifício Joaquim Nabuco na rua Maria Antonia em abril de 2013. Foto do autor.

Em abril de 2012 comecei a pesquisar os conflitos da chamada “guerra da Maria Antonia”, que marcaram a história dos prédios do centro universitário. Mas não só. Descobri que as particularidades dessa guerra eram tão complexas que sua origem poderia ser retraçada até a fundação da própria Universidade de São Paulo, dois anos depois da derrota da Revolução Constitucionalista de 1932. Contudo, apesar da longa trajetória de disputas políticas e ideológicas dentro e fora da USP, foi na década de 1960 que os conflitos ganharam as ruas. Em 1968, após uma série de pequenos incidentes entre os grupos de direita e de esquerda, a rua Maria Antonia foi cenário de um enfrentamento armado entre estudantes da USP, do Mackenzie e policiais, terminando com a morte do secundarista José Carlos Guimarães em 3 de outubro. A quantidade abundante de artigos e fotografias em comparação com outros conflitos dessa mesma época nos leva a concluir erroneamente que a guerra da Maria Antonia foi excepcional na história do país. As passeatas e demonstrações de insatisfação popular que se acumulavam desde 1962 provam o contrário. Ao estudar a história das transformações políticas no Brasil em paralelo com as revoluções socioculturais no resto do mundo nessa década é possível até inferir que essa guerra foi mais uma expressão da contradição em vigor na época entre liberalidade e repressão. Conforme diz o jornalista Elio Gaspari, os cabelos longos e as pílulas anticoncepcionais viviam em choque com os uniformes e os decretos. No fim de 1968 esse processo se acelerou: entre o pedágio instaurado na rua Maria Antonia pelos alunos da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas para arrecadar fundos para o XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes, a prisão em massa de estudantes nesse mesmo Congresso e assinatura do Ato Institucional n. 5 (AI-5) se passaram cerca de dois meses.

Os prédios da rua, entretanto, sobreviveram aos anos de chumbo e se tornaram símbolos na capital paulistana da resistência às forças opressoras do Estado. Antes dos prédios Joaquim Nabuco e Rui Barbosa serem reintegrado à USP na década de 1990, eles abrigaram a Junta Comercial, a Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo e o Conselho Penitenciário. Fundado em 1993, o Centro Universitário Maria Antonia responde desde então à vocação inegável para ser um espaço de reflexão e memória, e ciente da sua própria importância histórica, faz uso explícito da imagem dos seus prédios (fig. 3).

Figura 3: Adesivos da instituição com imagens dos seus edifícios. Foto do autor.

A reapropriação dos edifícios como símbolos de uma tradição política se vale indiscutivelmente dos acontecimentos de 1968. No entanto, em 2011, quando entrei pela primeira vez no prédio Rui Barbosa, tive apenas uma leve impressão da relevância daquele local, quem sabe em função das fotografias das barricadas penduradas na parede. Mesmo frequentando o centro assiduamente a partir de então como estudante, não ganhei dessas fotografias nenhum conhecimento a mais sobre a guerra da Maria Antonia além daquele disponível a qualquer visitante desavisado: de que houve barricadas, ocupações, destruição etc. Doutro modo, os relatos ocasionais de alguns dos meus professores que haviam sido ex-alunos naquele mesmo local despertaram em mim um interesse infinitamente maior. Percebi que o mais importante não eram os fatos, mas as narrativas. Em sua maioria, as digressões feitas em meio ao conteúdo das aulas eram comoventes. Tive cada vez mais certeza no decorrer do projeto de que esses breves comentários mudaram completamente minha visão sobre o assunto. Hoje é fácil perceber que se não tivesse escutado essas histórias pessoais eu jamais veria a rua como a vejo: como uma zona de tensão política permanente.

Certo de que as pequenas crônicas haviam transformado meu olhar – e de que a contribuição da contemplação semanal de fotografias na parede nesse processo era irrisória – abandonei minhas preocupações iniciais com as fachadas dos prédios. Em vez disso, me concentrei no poder transformador das narrativas e saí à procura de novas fontes de informação. Nessa busca, tive o receio de que o meu tempo de projeto disponível pudesse inviabilizar uma pesquisa substancial e, em função disso, decidi que ao menos uma coisa eu faria: publicaria de imediato os meus resultados, caso eles tivessem alguma serventia a outras pesquisas. No entanto, para que pudessem ser publicados, esses resultados necessitariam de algum formato. Logo, não pude deixar de me perguntar – graças, talvez, à minha formação como designer – que bem não faria aos outros pesquisadores um formato que fosse expansível o suficiente para dar conta de fontes de informação cada vez mais numerosas e complexas. Em outras palavras: e se, em vez de simplesmente oferecer os resultados de uma pesquisa, eu concebesse um meio de organizar e cruzar os dados de inúmeras outras pesquisas? E se o meu projeto fosse de uma estrutura?

Tal rearranjo da minha proposta inicial não teria o corrido, por sua vez, sem as minhas visitas à sala de Apoio e Pesquisa do Centro Universitário. Lembro muito bem que em agosto de 2012 me deparei lá com uma pasta recheada de fotografias e textos sobre a guerra da Maria Antonia. Diante de um conteúdo transbordante – na época parcialmente catalogado – a proposta de uma estrutura organizacional pareceu mais urgente. Para minha sorte, encontrei na mesma sala dois meses depois o recém-criado Centro de Documentação e Memória, do qual faziam parte Rodrigo Vazquez e Thiara Grizilli. Assim, na companhia de interlocutores tão interessados quanto eu na criação dessa estrutura, pude conversar demoradamente sobre suas possíveis características e sobre a natureza dos dados já recolhidos. Sem as visitas e as correspondências com o pessoal do Centro, meu projeto poderia ter facilmente se transformado em um mero exercício especulativo. Graças a ele tive acesso aos arquivos e índices temporários produzidos pelo próprio Centro, a partir dos quais fui capaz de reavaliar meus primeiros rascunhos.


Uma estrutura deve responder a um propósito. É um erro supor que uma boa estrutura de dados é aquela que simplesmente atende às categorias predeterminadas pelas inúmeras teorias das ciências da informação, entre elas a biblioteconomia e a arquitetura da informação. Tal como qualquer outra, a base de dados proposta sobre o Centro Universitário Maria Antonia deve seguir um princípio que garanta não apenas a organização, busca e publicação dos dados recolhidos, mas também sua expansão e complexificação no decorrer do tempo.

Figura 4: Esquema simplificado da estrutura da base de dados.

Após uma série de estudos, esse princípio correspondeu na proposta a uma forma: a radial (fig. 4). A base tem a seguinte composição: no centro, conectadas a todos os outros itens, estão as fontes de informação; na periferia estão os dados relativos ao acervo (físico ou digital das fontes), às etiquetas (aplicadas às fontes), às coleções (de fontes), aos graus de relevância (à pesquisa de cada uma das fontes), às línguas (utilizadas em cada uma das fontes) e às pessoas (físicas ou jurídicas associadas às fontes). Soma-se a essas conexões outra muito especial entre as fontes de informação e elas mesmas. Essa autorreferência permite que: 1. se explore de fonte em fonte o panorama das informações sobre a história do Maria Antonia; e 2. que todos os dados da base mantenham alguma relação entre si. A forma radial foi escolhida por naturalmente privilegiar a expansão indefinida de itens e subitens sem que se perca de vista o propósito central do banco: a organização das fontes de informação sobre a história do Centro.

Essas fontes são diversas; por isso, agrupei-as em subitens simultaneamente por gênero – como edições, eventos, matérias, plantas, sites – e por formatos – áudios, documentos, textos e vídeos (fig. 5). Desse modo consegui dar mais ou menos conta dessa diversidade, sem deixar que o sistema superestimasse subitens de menor importância para quem está mais interessado nas relações do que em classificações usuais, como “revistas”, “entrevistas”, “depoimentos” ou “simpósios”. A proposta prevê uma série de relações entre itens, subitens e itens intermediários, que facilitam tecnicamente o cruzamento de dados e diminuem a redundância geral do sistema. Por outro lado, a estrutura radial e reflexiva dá explicitamente pouca atenção aos atributos individuais de cada item, tendo em vista que o seu compromisso é com o conhecimento da existência das fontes de informação e das relações entre elas. Isso significa que, com o banco em funcionamento, se saberá, por exemplo, não dos detalhes de uma publicação, mas das exposições que geraram catálogos, gravações dos seminários, fotografias em artigos, artigos publicados em livros, livros citados em outros livros, e assim por diante.

fontes
Áudios gravações relacionadas ao assunto
Documentos documentos relacionados ao assunto
Edições livros, catálogos e outras publicações relacionadas ao assunto
Eventos eventos sobre o assunto
Imagens imagens e fotografias relacionadas ao assunto
Matérias artigos e notas de periódicos relacionados ao assunto
Materiais gráficos materiais gráficos relacionados ao assunto
Plantas plantas e elevações dos edifícios relacionados ao assunto
Sites websites, portais e blogs relacionados ao assunto
Textos textos, monografias, correspondências e processos relacionados ao assunto
Vídeos vídeos e filmes relacionados ao assunto

Figura 5: Descrições dos subitens das fontes de informação.

Além das relações entre fontes de informação, a base de dados proposta também privilegia o item relativo às pessoas. Isso porque as personagens que dão vida a essa história são escritores, jornalistas, estudantes, políticos, historiadores, fotógrafos, professores, entre outros. Em função da presença constante dessas personagens em todas as fontes de informações – muitas vezes com múltiplos papéis –, senti a necessidade flexibilizar as relações entre pessoas e fontes com o uso de classes intermediárias que listam todos os tipos de participações possíveis e imagináveis, como “autores”, “fotógrafos”, “fotografados”, “artistas”, “participantes”, “editores”, “formandos”, e assim por diante. Essa intermediação não é apenas comum em base de dados relacionais como a proposta, mas desejável em estruturas desenhadas para crescer.


As pessoas, entretanto, não são apenas nomes em uma lista. Além das informações pessoais, um banco de dados também se alimenta de ações. Nos projetos de base de dados essas ações são conhecidas como “casos de uso”, e o seus agentes como “atores” (fig. 6). Os casos de uso de um determinado ator são compostos de uma série de atribuições e usos, da qual um banco de dados depende para ser projetado, desenvolvido, alimentado, incrementado, expandido e consultado. Obviamente, em função da complexidade desse tipo de projeto, muitos atores podem não ser considerados até que o banco esteja em funcionamento e podem surgir muitos agenciamentos imprevistos.

ator descrição caso de uso
Projetista aquele que identifica a necessidade de uma base de dados e concebe a sua estrutura de acordo com o propósito e os objetivos definidos por uma instância autônoma documenta o projeto da base de dados
expande o projeto da base de dados de acordo com o propósito e a necessidade
Desenvolvedor aquele que escreve o código do banco, mantém a base de dados em funcionamento de acordo com o projeto e realiza ajustes técnicos escreve o código do banco de dados
relata erros e inconsistências de projeto
Administrador aquele que faz a manutenção da plataforma e relatórios periódicos realiza testes de consulta e performance
administra a hospedagem do banco de dados
relata erros e inconsistências de projeto e de código
Pesquisador aquele que descobre e seleciona as fontes de informação sobre a história do Centro indica novas informações a serem cadastradas
indica correções e atualização dos dados
Gerente aquele que alimenta o banco de dados de acordo com classes, atributos e relações descritos no projeto insere os dados no banco
relaciona os dados entre si
determina as etiquetas
responde às dúvidas dos usuários
Usuário aquele que consulta os dados consulta os dados do banco

Figura 6: Atores e casos de uso.

Um ator, no entanto, foi deliberadamente negligenciado nessa proposta. Ele corresponde à figura do mantenedor ou patrocinador do banco de dados: aquele responsável por financiar os custos de desenvolvimento e manutenção do banco, remunerando o tempo daqueles que se dedicam a ele. Não atentei para essa negligência até o momento da conclusão do trabalho. Na mesma ocasião percebi que essa omissão era fundamental e precisava ser assumida. Isso porque, ao longo do projeto, em função da natureza absolutamente independente da minha iniciativa, tornou evidente que a estrutura de dados e de usos implicava uma colaboração potencialmente ilimitada entre os chamados “usuários” e todos os outros atores. Se é verdade que na ausência de uma força reguladora o número de gerentes tende a se igualar ao número de usuários, então a colaboração entre aqueles que trabalham para manter a estrutura e aqueles que usufruem da sua existência está destinada a formar espontaneamente uma comunidade.

Essa autogerência contingencial e difusa impõe uma série de desafios ao modo como ainda teorizamos sobre o projetar. Talvez o exemplo mais emblemático dessa nova lógica de projeto seja a maior e mais popular obra de referência no mundo on-line: a Wikipédia. De maneira muito mais radical do que essa proposta de base de dados sobre o Centro Universitário Maria Antonia, a Wikipédia ressalta todas as questões advindas da fundação e manutenção de um centro de informações descentralizado, isto é, um repositório gerido e alimentado por atores dispersos e anônimos. Em menos de dez anos a intensificação dos seus pedidos por doações começou a dar sinais de que esse modelo colaborativo poderia estar se deparando com seus limites. Seria essa sede de recursos livres o sintoma do fracasso de uma forma extrema de agenciamento? Por sua vez, o risco do fracasso não indica que estamos lidando com um fenômeno verdadeiramente novo? Iniciativas como essa não merecem ser defendidas contras todas as adversidades?

Um dos seus defensores foi o programador e ativista norte-americano Aaron Swartz. Em 2006, Swartz se candidatou a uma vaga no conselho da Wikipédia com a missão explícita de evitar que esse mesmo conselho concentrasse o poder para regrar comportamentos indesejáveis e recompensar um grupo seleto de colaboradores. Seu texto “Who Runs Wikipedia?” reitera – em oposição aos argumentos daqueles que se outorgaram a função de gestores da enciclopédia – a importância de se manter a plataforma aberta à edição de qualquer um em qualquer ponto do planeta, a despeito das suas boas ou más intenções. Um argumento desse tipo, em relação às formulações de projeto que herdamos das revoluções industriais dos últimos dois séculos, só pode soar como um escândalo. O modelo de agenciamento massivo e irrestrito do qual se vale a Wikipédia – e do qual se valeria também uma base de dados sobre o Centro Universitário Maria Antonia – é impensável sob a prerrogativa do controle. Aos olhos daqueles que ainda entendem o projeto como o plano à parte da sua realização, contribuições momentâneas e pontuais, sem qualquer perspectiva sistêmica, merecem no máximo desconfiança. Por isso, esta é uma “proposta” e não um “projeto”, no sentido tradicional do termo, posto que ela não existe sem a expectativa de que outras a aceitem, a rejeitem ou a modifiquem, dando-lhe quiçá alguma continuidade. Sua prerrogativa é a de uma comunidade possível; sua justificativa depende de que proveito ela terá para futuros agentes. Ao subverter a ordem usual do desejo – que vai das intenções às propostas –, uma proposta como esta é a intenção de que algo novo se realize, algo que ainda não se pode formular.

Só tendo dito isso é possível cogitar sobre a dimensão política desta estrutura. Ela o é muito menos pelo conteúdo político que abriga e muito mais pelos problemas que suscita entre aqueles que a usufruem e aqueles que a mantêm em funcionamento. A distribuição dos direitos e deveres dentro da estrutura é decidida pelos poderes que a regem, e se eles são descentralizados, essa distribuição também o é. Em uma comunidade todos os problemas precisam ser renegociados entre os seus membros a cada vez, pois, diferentemente das ferramentas de gestão corporativa ou estatal, as bases de dados desse tipo não nascem de uma política institucional. Uma base comunitária só se justificativa enquanto a comunidade é soberana sobre ela, inclusive para exterminá-la caso se torne mais onerosa que útil, visto que só se faz uso de estruturas de natureza acumulativa enquanto elas poupam o tempo de seus usuários.

E assim, por versar também sobre esse bem comum escasso que é o tempo, esta proposta também é política. Em qualquer sociedade as formas de economia do tempo são por definição formas de resistência a exploração por parte dos seus setores dominantes. Além dessa, herdamos outras convicções de 1968, como aquela sobre o poder das mobilizações espontâneas. De modo diferente mas análogo, a experiência em curso da Wikipédia indica que realizações extraordinárias também são possíveis fora do controle de um projeto. A espontaneidade é o sinal de vida de uma comunidade, e como observou Aaron Swartz, comunidades são difíceis de criar. Acrescento até que, se a rigor as comunidades brotam de acordo com uma causalidade misteriosa, elas são impossíveis de projetar ou mesmo patrocinar; autogerar e autogerir são verbos inconjugáveis na linguagem dos projetos patrocinados. No agenciamento colossal dessas estruturas toda concentração de poder ou recursos tende a ser rapidamente diluída por força da sua natureza colaborativa. Nessas estruturas, os especialistas – como os projetistas ou gestores – lutam em vão por uma posição especial; o poder é isotrópico. O futuro dos projetos comunitários verdadeiramente independentes pode ser resumido em uma paráfrase da máxima iluminista atribuída a um dos criadores da enciclopédia original, Denis Diderot:

As comunidades não serão livres até que o último patrocinador seja enforcado nas tripas do último especialista.

Referências