Trabalho de conclusão do curso Design e Humanidade (3ª edição) no Centro Universitário Maria Antonia Universidade de São Paulo em 2013.
Orientação: Maria Argentina Bibas & Minoru Naruto
Documento iniciado em 20 jan. 2013; concluído em 2 abr. 2013; revisado em 9 maio 2013.
Uma proposta de base de dados sobre o Centro Universitário Maria Antonia by Felipe Kaizer is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported License.
Proposta de uma base de dados sobre as fontes de informação a respeito da história do Centro Universitário Maria Antonia motivada pela ausência de um centro de referência para pesquisadores sobre Guerra da Maria Antonia (em outubro de 1968 em São Paulo). O projeto da proposta se vale de breves considerações acerca de política, história, design e ciência da informação.
Este projeto teve início com a minha curiosidade pelos eventos ocorridos na rua Maria Antonia, em São Paulo, no decorrer de 1968, dos quais o mais conhecido é a série de conflitos envolvendo estudantes e policiais no início de outubro. O contexto político desses conflitos – que vieram a ser chamados de “Guerra da Maria Antonia” – é objeto de amplo e crescente interesse, pois esse período da história do país, da rua e das universidades que ela ainda abriga, é marcado pela intensificação do regime ditatorial então vigente no Brasil, em especial pela decretação do Ato Institucional n. 5 (AI-5) em dezembro do mesmo ano.
Entretanto, a despeito dos inúmeros documentos, exposições, filmes, publicações, entrevistas e artigos referentes a essa época, encontrei em uma pesquisa inicial apenas referências esparsas a respeito da guerra, seus antecedentes e desdobramentos imediatos. Acredito que isso tenha se dado em parte pelo meu amadorismo como pesquisador, em parte pela ausência de um centro de referência sobre os ocorridos na Rua Maria Antonia. Sobre isso vale a nota de que, à parte os artigos de época, ao menos até fevereiro de 2013, constavam no Banco de Dados Bibliográficos da Universidade de São Paulo apenas dois livros sobre o assunto: Maria Antônia: esperança e utopia e Maria Antônia, uma rua na contramão. Me espantei não só com a pequena quantidade de fontes a respeito de um episódio representativo da história da ditadura no país, mas também com a atual desarticulação entre as informações existentes. A ausência de uma instância que centralizasse e relacionasse essas informações me levou a concluir que não era óbvio que o próprio Centro Universitário Maria Antonia – ainda o símbolo local de resistência à passada ditadura – iria organizar e disponibilizar as informações sobre a sua história e a história dos ocorridos no seu entorno, mesmo que de posse de tais informações.
Concomitantemente, à medida que alguns dos meus professores – ex-alunos da USP –, teciam, em meio às aulas, comentários breves mas intensos sobre suas experiências naquele mesmo local, tornou-se cada vez mais evidente que eu ignorava profundamente o significado do espaço que assiduamente frequentava duas vezes por semana como estudante. Novamente com espanto, fui obrigado a admitir que, neste projeto, restava-me pouco a dizer sobre a história do Centro e da sua rua, tendo em vista a dificuldade de sequer tomar parte do que até então havia sido dito. Dessa ignorância – e no lugar do simples emudecimento –, cresceu minha convicção de que eram as estórias que ouvi as responsáveis por alterar minha percepção do espaço, e não a minha experiência presencial. Logo, o desejo de tratar diretamente dos edifícios (ver Anexo 1 ago. 2012) deu espaço a reflexões sobre o poder transformador dessas estórias, e assim, pressupondo que o meu interesse inicial não era apenas meu, passei a considerar a chance de poupar tempo e trabalho de outros curiosos, disponibilizando publicamente os resultados das minhas pesquisas. O projeto passou então a ter outros problemas em potencial: 1. a insuficiência de uma pesquisa individual, que, em função dos limites do indivíduo, poderia ignorar boa parte das fontes existentes, e 2. a inexistência de uma estrutura própria à organização e apresentação dessas informações, que pudesse torná-las objeto de consulta.
Nesse ponto, eu estaria superestimando meu tempo e minhas habilidades se me acreditasse capaz de propor consistentemente um centro de referência que abrigasse um conteúdo complexo como os eventos na rua Maria Antonia antes, durante e depois de 1968. Mais sério do que isso, por sua vez, seria subestimar a dimensão política da fundação de uma instância desse tipo, que necessita mais de uma vontade coletiva do que de uma ferramenta organizacional. Contudo, independentemente da efetividade dessa vontade, e dentro das minhas capacidades, acreditei que poderia contribuir na criação de uma ferramenta que atendesse pesquisadores, estudantes ou simples curiosos como eu e, com isso em mente, dei um passo atrás das dificuldades explicitadas e me pus a imaginar o que deveria ser feito, em primeiro lugar, sobre a história do Centro. Supus então que, antes das consultas às fontes de informação sobre essa história, era preciso formatar o acesso a elas. Mas, considerando que para dar o acesso é preciso estar de posse das fontes – o que seria impossível neste projeto –, decidi oferecer ao menos o pré-requisito da posse, que é o conhecimento da existência dessas fontes, ciente também de que esse conhecimento só teria uso público se fosse organizado sistematicamente.
Tudo isso considerado, comecei a desenhar uma base de dados sobre o Centro Universitário Maria Antonia, sem esperar que fosse concebida uma instância central, capaz de alimentar e manter essa base. Tal inversão da ordem natural das etapas de um projeto desse tipo – corroborada pela decisão de que a base seria sobre o Centro, e não para o Centro – me levou a refletir mais uma vez sobre o sentido político desta proposta. Aos poucos me pareceu que apenas uma compilação de dados seria insuficiente aos propósitos do projeto, e que, como já foi dito, havia um “antes” da ferramenta. O que eu não havia percebido é que esse “antes” também atendia pelo nome de política – como em “política de arquivo” ou “política de arquivamento” –, e que ela estava na base dessa compilação organizada, que tem por nome comum “base de dados” ou “banco de dados”. De início também não percebi que, dada a intimidade entre a “política” e o “banco”, é possível afirmar que a base é a política de fato – já que determina as ações dos sujeitos –, e a política é a base da base – já que sem ela toda base está fadada ao mau uso ou desuso. Obviamente, em pouco tempo descobri que não há qualquer coisa de inédita nessa questão, visto que todas as instituições precisam se haver com o duplo desafio de definir “o que” é digno de ser preservado e “como” preservá-lo – desafio vencido, em geral, por uma política superior, comumente chamada de “institucional”.
Mas, considerando que os episódios particulares da história do Centro Universitário Maria Antonia se tornaram uma espécie de metonímia da história do país, abro aqui outra exceção e me concedo, neste trabalho, a prerrogativa de considerar que ao meu interesse corresponde um interesse geral, e que há, portanto, um acordo tácito sobre quais fontes de informações devem ser salvas – a saber, todas aquelas que ao menos tangenciam a história do Centro, que não por acaso foi o epicentro da criação da Universidade de São Paulo com a primeira Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Por outro lado, tentei remediar essa excepcionalidade indevida de duas maneiras: 1. travando o diálogo mais próximo que pude com os responsáveis pelo recém-criado Centro de Documentação e Memória do Centro, na tentativa de compreender suas necessidades, e 2. reconhecendo de antemão que este projeto é apenas uma proposta, isto é, uma proposta que não pretende ser absolutamente adequada ou exaustiva, mas que convida à reflexão, expansão e revisão, e uma proposta, que não só admite a possibilidade de sua refação, mas espera outras propostas que, melhores, a suplantem.
Por fim, adianto ao leitor que na primeira parte deste trabalho trato com brevidade das questões que se colocam de imediato em uma proposta de base de dados, a saber, 1. em que medida ela faz jus aos interesses que a animam, e 2. se ela se caracteriza como um projeto de design em meio a uma série de disciplinas correlatas, como a ciência da informação e a arquivística. Na segunda parte descrevo todos os itens e relações do modelo de base de dados proposta com a granularidade adequada a um estudo e não a sua implementação. Na terceira parte apresento minhas impressões finais sobre a proposta, confesso minhas expectativas quanto ao seu futuro e agradeço a todos que envolvi neste projeto. Anexo também algumas correspondências que julguei relevantes a esta documentação.
A impressão que se tem é que, se já existisse, a base de dados proposta estaria repleta de informações sobre os conflitos de 1968. Isso se deve à abundância de fontes de informação dessa época sobre a rua Maria Antonia e ao interesse geral que a tal guerra até hoje suscita. Obviamente a base acolheria igual e indiscriminadamente informações de outra natureza – como o histórico dos prédios, a lista de formados etc. –, mas, tendo pressuposto um interesse consensual sobre a importância política dos eventos dessa época, cabe investigar ao menos brevemente a noção de política sobre a qual a proposta se assenta.
Levando em conta tudo o que foi dito na Introdução, nossa investigação parte agora da década de 1960, a despeito das inúmeras informações relevantes de datas anteriores. De início, encontramos nessa década uma atmosfera de liberalidade e contestação, sobretudo no que diz respeito à cultura. No panorama do jornalista Elio Gaspari:
Vinte e sete anos depois do aparecimento da penicilina injetável e oito anos depois da comercialização da pílula anticoncepcional, o orgasmo dissociara-se do medo e do compromisso. Vivia-se o período de maior liberdade sexual da história humana. Centenas de milhões de jovens nascidos após a guerra começaram a deixar crescer simultaneamente cabelos e ideias. Neles afloraram sentimentos libertários que tinham brotado havia décadas nos bairros intelectuais e nos redutos da marginalidade boêmia de todo o mundo. Um novo barulho – o rock – e um novo jeito de estar só, o de James Dean com seu olhar de altaneira distância, antecipavam o controle da juventude sobre a cultura mundial pelo resto do século. (Gaspari, p. 213)
O mundo jovem do pós-guerra experimentava novos “cabelos e ideias”, com repercussões não apenas no plano individual, mas também na política e nas instituições tradicionais, que passaram a sofrer pressões de caráter inédito – e talvez, pela primeira vez, de maneira simultaneamente global –, advindos dos protestos e movimentos de contracultura crescentes. As agitações não passaram, por sua vez, sem uma reação igualmente vasta e intensa. E, como nos lembra Olgaria C. Matos, nesse cenário o Brasil não foi uma exceção:
Alemanha, França, Itália, Holanda, Bélgica, Suíça, Inglaterra, Dinamarca, Espanha, Turquia, Tchecoslováquia, Polônia, Iugoslávia, Argélia, Tunísia, Marrocos, Senegal, Madagascar, Mali, EUA, Argentina, Uruguai, Peru, Chile, Venezuela, México, Japão, Brasil: quer se trate da luta contra a reforma universitária proposta pelo acordo MEC-USAID no Brasil, do protesto contra a guerra do Vietnã ou contra o golpe militar de 1964, que intervém nas organizações estudantis e operárias, determinando ocupações de universidades em todo o país e ocupação de fábricas, as imagens são as mesmas do cenário mundial – mortos, feridos, espancados. (Matos, p. 35)
O choque de realidades contraditórias se fez sentir portanto mundialmente. Daí que lembremos frequente e paradoxalmente do golpe militar de 1964 como o início de “um período de supressão das liberdades públicas precisamente quando o mundo vivia um dos períodos mais ricos e divertidos da história da humanidade” (Gaspari, p. 211). Durante todo esse tempo identificamos manifestações e acontecimentos, que se não preparam o terreno para os eventos de 1968 no Brasil, ao menos os colocam hoje em perspectiva, tais como: a polêmica em torno da paridade defendida pelos universitários desde 1962, o atentado contra o Congresso da UNE, em Petrópolis em julho do mesmo ano, a Marcha da Família em 19 de março de 1964, e os protestos no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte em março de 1966 (Ibidem, pp. 378-384).
E assim, dentro da década, 1968 tem suas particularidades, e, como já extensivamente argumentado, o “maio francês” é o exemplo da inquietude do ano. Com sua simbiose entre estudantes, intelectuais e operários, em linhas gerais, esse movimento ainda nos parece singular pela recusa generalizada ao sistema de partidos, seus programas, reivindicações e métodos – isto é, à forma convencional de oposição política –, a ponto de se afirmar que “a política não foi o solo deste movimento” (Matos, p. 15). Como uma mudança radical no seio das mudanças já em curso na década de 1960, o maio de 68 parece “abrir uma brecha” na medida em que estreia “um novo estilo de ação […] em rompimento com os quadros da contestação tradicional” (Ibidem, p. 61).
Mas Gaspari talvez tenha alguma razão ao dizer que “no Brasil havia a sensação de que o Maio Francês começara em março” (Gaspari, p. 290), pois é desse mês a morte traumática no Rio de Janeiro do secundarista Edson Luis, e a comoção geral que se seguiu. Em paralelo a tentativa já no governo de Castello Branco de purgar a universidade brasileira das ideias da esquerda por meio de delações e demissões levou os liberais que discretamente apoiaram a derrubada de Goulart a se retraírem, os aproveitadores da extrema direita a avançarem, e os estudantes a se radicalizarem (Ibidem, p. 224), tornando as universidades e as ruas – quase sempre os pontos de partida de toda rebelião estudantil (Matos, pp. 23-24) – o cenário para manifestações mais volumosas e intensas, evidenciando “que o regime perdera o apoio da classe média e até de uma parcela da elite. [E assim,] para uma Revolução que se considerava abençoada pelas Marchas de 1964, a Passeata dos Cem Mil [em 26 jun. 1968] fora uma excomunhão” (Gaspari, p. 309). Logo, se na França “o final do mês de maio já [deixava] entrever sinais de ‘degenerescência’ do movimento” (Matos, p. 91), também no Brasil “desde o fim de junho haviam-se acabado as passeatas frentistas” (Gaspari, p. 305).
Para não terminarmos nosso panorama de 1968 sem ter localizado a Guerra da Maria Antonia, façamos um parênteses em torno da história da Universidade de São Paulo – fundada em 1934, sob os auspícios de Armando Salles de Oliveira e Júlio de Mesquita Filho. Para tal é preciso reconhecer, em primeiro lugar, que:
[…] a Universidade de São Paulo foi um projeto de setores esclarecidos da elite política e social do Estado, com vistas ao reforço e ampliação dos seus quadros de apoio. Por isso, ao lado do que havia de científico e intelectualmente arrojado no projeto, havia também um ponderável elemento conservador do ponto de vista político-social. (Espaço da USP, p. 10)
A despeito da gravidade dessas afirmações, cito-as apenas para recordar que, em seu “projeto”, essa mesma “elite” pôs, de maneira inequívoca, “ênfase na Faculdade de Filosofia” (Ibidem, p. 17) após “a derrota paulista na Revolução Constitucionalista de 1932” (Ibidem, p. 22; ver relato de Júlio de Mesquita); a mesma faculdade que foi o epicentro dos conflitos dos dias 2 e 3 de outubro de 1968, talvez não por coincidência se recordarmos que “a ocupação da Faculdade de Filosofia […] e a breve tentativa de realizar ali o ideal comunitário da paridade” foi visto como o “início de uma revolução social” (Associação dos Docentes da USP, p. 41), confirmando que “o processo agudo de radicalização do movimento estudantil” representou, “no ambiente político brasileiro, a versão nacional do grande momento de revolta dos estudantes que sacode os Estados Unidos e a Europa” (Ibidem, p. 40). Dito isso podemos imaginar sob quais tensões históricas e ideológicas, oriundas de dentro e de fora da USP, esteve a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, instalada desde 1949 no conjunto de prédios na rua Maria Antonia.
Tensões essas que explodem no início de outubro nos conflitos entre estudantes de esquerda, de direita e policiais e que culminam na morte do secundarista José Carlos Guimarães. Não é possível saber se, além da imagem da camisa ensanguentada que “passou por várias mãos” (Amendola, p. 135) e o fim da guerra de dois dias, sua morte deu origem a alguma mudança no panorama nacional. Não obstante, tornou-se claro que “a partir do episódio da Maria Antônia começa o desmantelamento do movimento estudantil, sob violenta repressão” (Associação dos Docentes da USP, p. 44), e que daí em diante tudo se passa demasiadamente rápido, com a prisão em massa dos participantes do XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes em 12 de outubro e a decretação do AI-5 em 13 de dezembro. Igualmente célere é o relato de Gaspari:
Quando os estudantes começaram a afluir para o Congresso da UNE, o terrorismo de direita já lhes ensinara que o último trimestre de 1968 era diferente do primeiro. Na pequena rua Maria Antonia, no bairro paulista de Higienópolis, conviviam a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e Universidade Mackenzie. […] Durante todo o ano os dois lados da calçada hostilizaram-se, até que no dia 2 de outubro alunos da escola de filosofia fecharam a Maria Antonia, cobrando pedágio em benefício da organização do Congresso da UNE. Um estudante do Mackenzie jogou um ovo no grupo que bloqueava a rua, e deu-se uma breve pancadaria, esfriada com o aparecimento da polícia. À noite o laboratório do Mackenzie foi aberto para a fabricação de bombas. […] O terrorismo de direita, que acabara com o teatro Opinião no Rio de Janeiro, incendiara a Maria Antonia. Esta fora o refúgio de professores europeus fugitivos do nazismo, era o berço da moderna sociologia brasileira. Nas suas ruínas, estudantes cantaram “Saudosa maloca”. (Gaspari, p. 324-5)
Após isso – seguindo a lenta migração da maioria das faculdades da USP para o novo campus a partir de 1941 –, a Filosofia abandona em 1970 seu edifício original (Amendola, p. 196). Antes de ser reintegrado à USP na década de 1990, o conjunto de prédios foi ocupado pela Junta Comercial, pela Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp) e pelo Conselho Penitenciário.
Não é de se estranhar que, face a riqueza dos anos citados, a minha geração nutra uma admiração por 1968, às vezes solene e silenciosa. Também não é por acaso que tal ano permanece uma fonte inesgotável de estórias e atores “interessantes”. No entanto, por mais variados que sejam os motivos de admiração das gerações pós-68, a impressão que se tem é de que se trata hegemonicamente de interesses de cunho político, animados, naturalmente, pelas contradições do presente. Não disputo aqui a validade das pesquisas que se debruçam sobre a mesma época com outras motivações, mas me pergunto como deveríamos entender, então, a afirmação supracitada de Olgaria C. Matos, de que “a política não foi o solo” do movimento de Maio de 68. Isto é, se essa “segunda Revolução Francesa” (Matos, p. 13) não era estritamente política, por que ela ainda é objeto de discussões dessa natureza?
Fica suspensa, com essa pergunta, não apenas a pertinência do nosso interesse, mas a própria conotação do termo político. Digo isso porque, para além das ideologias em jogo naquele mundo não muito distante no tempo e no espaço, há nitidamente, pelo que já foi aqui descrito, uma preocupação com o estilo de ação ou, em outras palavras, com as formas de resistência. Em 1968, essa “política” mais aparentada à “tática” sugere uma inversão da ordem tradicional da ação, que usualmente vai da deliberação à execução. Me parece que, se fosse possível (ou mesmo conveniente) extrair algo como uma lição desse período, é que, frente a desconfiança generalizada em relação às convenções, resta ainda algum espaço para ações relevantes.
Espaço em que é possível contornar o problema comum da ausência de vontade política. Como modo alternativo de iniciativa, vê-se que a partir da década de 1960, a expressão “ação direta” começa a fazer parte do nosso vocabulário, associada principalmente à recusa da burocracia envolvida em qualquer forma de organização. Entretanto, a pergunta a ser feita agora é se não permanece a necessidade de alguma organização em ações coletivas, mesmo naquelas espontâneas, tais como a aderência dos trabalhadores às agitações estudantis no Maio Francês. Essa pergunta nos leva a crer que a definição de uma organização “apolítica” guarda em si uma espécie de contradição em termos, pois é difícil imaginar uma mobilização que prescinda de um mínimo de convencimento, assim como de meios. Logo, é possível especular se o novo “modelo” de agitação surgido na década 1960 mais do que descartar as declarações de intenções (em manifestos, por exemplo) dá prioridade às ações sobre elas.
Reitero que este projeto, como iniciativa, está portanto ainda sob o signo da política. Mas, por se tratar de uma proposta de uma ferramenta, presumo que a acepção de política que o determina é de um tipo mais modesto. Isso porque, por princípio, uma base de dados está a serviço de uma política (policy), que está, por sua vez, a serviço de outra política, mais elevada. Nessa hierarquia, a primeira política – composta por um conjunto de normas de conduta, reguladas e acordadas por uma coletividade – é sempre predeterminada por uma politics, que, antes de tudo, delibera até mesmo sobre o que deveria ser objeto de deliberação.
Porém, acompanhando a inversão típica das ações diretas, devemos questionar se é possível que uma ferramenta se transforme em algo além de um simples instrumento para os objetivos predeterminados por aquela política mais elevada, à medida que os seus efeitos extrapolam os esperados. É possível negar essa transformação apelando ao princípio de que uma base de dados está sempre sob o domínio de uma política de arquivo. Entretanto, justamente como mera ferramenta, ela não se restringe aos interesses institucionais ou institucionalizados e se prova do mesmo modo útil a organizações formais e informais, e, em especial, a aquelas que sobrevivem da circulação de informação. Isso nos leva a concluir, por ora, que as bases de dados excedem o papel instrumental que lhes foi designado pelas grandes corporações – que as criaram com o intuito de manter o controle de informações – à medida que servem a outras formas de organização, não raro opostas à política dessas corporações. Como já ressaltei, assumo neste trabalho que é possível esboçar uma ferramenta adequada a uma política apenas presumida, e que me dou agora o direito de resumir como “simplesmente trazer a tona a existência das fontes de informações sobre a história do Centro Universitário Maria Antonia”. Por mais simplória que seja essa declaração, ela pode inspirar novos estudos.
Contudo, é preciso reconhecer que a natureza instrumental deste projeto não se vê livre em absoluto da política (politics) implicada na sua própria existência – afinal, diante de um plano como esse, é justa a pergunta “por que ele não existe?” ou mesmo – como se indaga Joachim Bernauer em 2002 – se “é legítimo desenterrar uma cultura passada transcorridos apenas 35 anos?” (Hoheisel, p. 10). Essas preocupações que concernem à acepção mais nobre da “política” deixo ao leitor, e cito, antes de prosseguirmos, uma passagem dos agradecimentos iniciais de Gaspari, que ao meu ver é um indício do poder de uma ferramenta e das iniciativas pessoais:
Luís Fernando Gonçalves desenvolveu uma versão pessoal de um banco de dados que permitiu a acumulação de 28 mil fichas e sua pesquisa. A sofisticação de seu trabalho, concluído em 1986, ainda não foi alcançada pelos fabricantes do original americano [isto é, da Library of Congress]. (Gaspari, p. 18)
A segunda questão que devo apresentar é sobre a natureza deste projeto e a que disciplina ele pertence. Isso significa localizá-lo em meio a uma miríade de termos e conceitos correlatos: design da informação, arquitetura da informação, ciências da informação, biblioteconomia etc. Porém, o modo como essas disciplinas e subdisciplinas se interpenetram torna difícil qualquer definição peremptória desta proposta – dificuldade agravada pela complexidade interna à própria natureza do projeto, que costuma envolver também uma pletora de profissionais, entre eles analistas, projetistas, programadores, administradores e pesquisadores. Assim, para que possamos prosseguir, sem o compromisso de exaurir a questão, é preciso ao menos identificar os grandes domínios sob os quais se encontra um projeto de banco de dados. Presumo que eles sejam dois: a ciência da informação e a teoria do design. Ambos apresentam suas próprias dificuldades de definição, o que não impede, entretanto, que tornemos mais clara a interseção onde se encontra este projeto.
Resumidamente, um banco de dados concerne à ciência da informação por se tratar de “um conjunto de dados com certa organização característica […] dentro de um sistema de informação” (Medeiros, pp. 14-15) e ao design pois ele sempre nasce de um projeto (ou modelo, na terminologia dos programadores). Pode parecer, à primeira vista, que assim não dizemos o suficiente para a exata compreensão deste projeto, mas atentando a outra definição formal da ciência da informação, pode-se captar, teoricamente com mais precisão, ao menos metade da questão: a ciência da informação é a “disciplina que estuda a teoria e a prática da geração, processamento e disseminação da informação” (Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, p. 48).
Sob essa grande “teoria e prática”, encontramos uma série de disciplinas, entre elas a arquivologia (ou arquivística) – que “estuda as funções do arquivo e os princípios e técnicas a serem observados na produção, organização, guarda, preservação e utilização dos arquivos” (Ibidem, p. 37) – e a biblioteconomia (ou Library Science) – “considerada como uma área do conhecimento, na medida em que compreende um conjunto de organismos, operações técnicas e princípios que dão aos documentos a utilização máxima, em benefício da humanidade” (J. Shera apud Russo, p. 38). Ainda sob esta última se abrigam as ciências da computação, sob as quais, por sua vez, encontramos a tecnologia da informação e a arquitetura da informação, ambas aplicações dos conhecimentos da ciência da informação aos sistemas de computador. Dentro dessa hierarquia, não devemos, no entanto, rebaixar uma base de dados a ponto de circunscrevê-la aos problemas específicos da computação, sobretudo se propomos aqui o projeto de um modelo de dados, e não o desenvolvimento de um código. Isso significa que, mesmo que o destino de uma base de dados seja se tornar um banco de dados no sentido estrito do termo, o projeto de uma base não está necessariamente limitado a aplicações posteriores. Sobre essa diferença, comparemos os dois verbetes:
banco de dados. Conjunto de dados relacionados entre si, estruturados em forma de base de dados, gerenciado por programa específico. […]
base de dados. Conjunto de dados estruturados, processados eletronicamente, e organizados de acordo com uma seqüência lógica que permite o acesso a eles de forma direta, por meio de programas de aplicação. (Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, pp. 41-42, grifo meu)
Ou seja, de tal modo o banco depende da base, que, frente a “forma” da sua estrutura, o caráter eletrônico e o uso de programas de aplicação em uma base de dados perde importância. Isso fica mais claro à medida que percebemos que o processo de desenvolvimento de uma base de dados tem ao menos duas fases indispensáveis antes da sua programação e implementação, denominadas por Claire Churcher (após Marvin V. Zelkowitz) “Declaração do problema” e “Modelo” (Churcher, p. 10). Como veremos mais adiante, esta proposta não excederá a fase de elaboração do “Modelo”.
Resta um esclarecimento acerca do segundo domínio determinante deste trabalho, a Teoria do Projeto, comumente entendida como a disciplina de Design. Nesse campo sabemos que há ao menos um termo costumeiramente associado ao projeto de banco de dados: design de informação. Entretanto, o information design (ou infodesign) é uma parte do design visual (ou mais imprecisamente design gráfico) que se dedica aos problemas de apresentação de dados, dos quais os infográficos são os exemplos mais comuns. Problemas visuais desse tipo entram em cena durante a “Declaração do problema” e o “Modelo” com a representação simples de esquemas de estruturas abstratas, porém não muito além disso, pois, mesmo que não possamos ignorar o papel do design de informação na criação desses esquemas, a questão principal é como deveríamos encarar o projeto das estruturas abstratas mesmas. Seria preciso batizar uma nova subárea do conhecimento como “design de estrutura”, ou “design de base de dados”? Nada de novo seria assim demonstrando, afinal, para os cientistas da informação, as etapas anteriores à programação já contam com a presença de uma figura bem determinada:
Projetistas de banco de dados: profissionais cuja responsabilidade é identificar todos os dados que devem ser armazenados no banco de dados, assim como determinar a sua estrutura através da especificação de um modelo de dados. (Alves, p. 53)
Vemos aqui uma boa definição das atribuições de um projetista de base de dados (se me permito uma correção), mas que passa ao largo dos problemas da natureza da atividade projetual, e que só podem ser propriamente discutidos no âmbito da teoria do projeto, independentemente dos profissionais envolvidos.
Como já foi dito, a criação de um modelo de uma base de dados antecede a programação de um código e a implementação de um banco de dados. Mas o modelo é, por sua vez, antecedido por uma declaração; Claire Churcher distingue a “Declaração do Problema” e o “Modelo” em função de uma divisão entre mundo em “real” e “abstrato” (Churcher, p. 10). Essa divisão, entretanto, tem pouco uso para este projeto, pois mesmo que o modelo seja de uma estrutura abstrata, isso não significa que ele seja abstrato – isto é, o modelo proposto existe “concretamente” ao menos como plano a ser executado. Nesse sentido estrito, ele é um projeto que responde a um problema declarado. No entanto, a relação entre a declaração e o projeto tem sido motivo de uma longa discussão entre os próprios teóricos do design, e abreviando tremendamente a questão – pois talvez haja menos consenso entre os teóricos do design do que entre os cientistas da informação –, a querela sobre onde começa o design, histórica e conceitualmente, tem origem, grosso modo, com as primeiras conferências na Inglaterra sobre os Design Methods:
[…] movimento surgido na década de 1960, com a aplicação de métodos inusitados e “científicos” aos problemas inusitados e urgentes da Segunda Guerra Mundial – de onde provêm os métodos de pesquisa operacional e as técnicas de gerenciamento de tomadas de decisão –, e das técnicas de desenvolvimento da criatividade da década de 1950. (Cross, p. 1, tradução minha)
O objetivo expresso desse movimento era o estabelecimento dos fundamentos de uma nova “ciência” do design que pudesse ser reconhecida como tal pelas demais, a saber, pelas consagradas “ciências naturais”. Um dos seus expoentes é Herbert Simon, que em 1969 publica The Sciences of the Artificial – livro que rapidamente se torna um clássico em função das suas considerações sobre sistemas complexos, processos de design e inteligência artificial. Igualmente rápida, infelizmente, é a rejeição do programa do Design Methods por parte alguns de alguns seus integrantes, como Christopher Alexander e John Christopher Jones, já na década seguinte (Ibidem, p. 1). Apesar disso, os argumentos de Simon tem até hoje um papel central nas discussões por atinarem para questões determinantes para as “ciências artificiais”, tais como a necessidade de uma revisão das lógicas imperativas e declarativas, a introdução de um critério de “satisfatoriedade” e a busca heurística de soluções.
Visando a fundamentação de uma ciência radicalmente diferente das naturais analíticas, a extensão do seu trabalho ignora as fronteiras e interesses corporativos da época. Desse modo, sua concepção de ciência do artificial se opõe ao reconhecimento pelo senso comum dos limites disciplinares bem estabelecidos pelo mercado e pela academia. Não obstante a marginalidade dessa visão singular, podemos nos valer dela aqui para reformular por completo a posição que este projeto ocupa em relações aos grandes domínios descritos, tal como especulo no esquema abaixo:
Para além disso tudo, Simon traça em diversos pontos da sua investigação um paralelo entre o funcionamento de um computador e o da mente de um designer, a ponto de afirmar que ambos pertencem à mesma família dos “sistemas de símbolos” (Simon, pp. 21-22, tradução minha). Se juntamos a isto à nota de Cross sobre o surgimento concomitante ao Design Methods dos “primeiros computadores destinados à solução de problemas” (Cross, p. 1), começamos a entender como os autores naquela época encaravam o que chamamos de “teoria do design”. Logo, a coincidência entre os primórdios de um novo campo de conhecimento e a série de problemas derivados do desenvolvimento tecnológico dos computadores deve ser vista com suspeita. Do ponto de vista deste projeto, porém, aproveita-se somente uma indicação: de que a teoria do projeto ganha corpo justamente quando precisa dar conta de problemas radicalmente abstratos, em outras palavras, de como resolvemos qualquer problema e não apenas um problema determinado.
Essas reflexões dão ensejo a uma revisão da ordem supracitada entre declaração e projeto – como se Simon hoje nos sugerisse que é possível estabelecer um processo de projeto antes mesmo de termos identificado um problema a ser resolvido. Tal revisão ainda prossegue, mas a ideia de um problema isoladamente identificável vai por água abaixo pouco tempo depois com as considerações de Horst Rittel que, na companhia de Melvis Webber, publica em 1973 o famoso ensaio “Dilemmas in a General Theory of Planning”. Essa nova etapa da teoria do design parte da constatação de que, sobretudo a partir da década de 1960, os projetos sociais, a teoria que os baseava, e o profissionalismo que se instituiu nos programas de governo não conseguiram mais acompanhar as questões colocadas pelos movimentos sociais (Rittel & Webber, pp. 155-156). Essa constatação vem acompanhada do reconhecimento de uma crise do próprio proceder por diagnósticos profissionais e pela utilização de modelos sociais, dada a heterogeneidade crescente da população, capaz de frustrar qualquer solução predeterminada. Com a definição inédita dos Wicked problems (problemas capciosos), o ensaio de Rittel e Webber relega ao passado o tempo dos “solucionadores universais de problema” que:
[…] com confiança arrogante, […] se declaravam prontos para tomar o problema de qualquer um, diagnosticar suas características escondidas, e então, tendo exposto sua verdadeira natureza, remover as raízes do problema com destreza. Duas décadas de experiência minguaram a confiança depositada em si mesmos. Esses analistas estão começando a perceber o quão válidos de fato são os seus modelos, pois eles mesmos se viram presos às mesmas dificuldades de diagnóstico que seus clientes tinham.
Agora estamos todos começando a perceber que um dos problemas mais difíceis de tratar é o problema da definição de um problema […]. Por outro lado – e igualmente intratável –, é o problema de identificar quais ações podem efetivamente encurtar a distância entre como as coisas são e como elas deveriam ser. À medida que buscamos resultados válidos aumentando a eficácia das nossas ações, à medida que se esgarçam os limites dos nossos sistemas, à medida que a nossa maneira de lidar com o funcionamento complexo dos sistemas sociais se sofistica, torna-se cada vez mais difícil operacionalizar uma ideia planejada. (Rittel & Webber, p. 159, tradução minha)
O xeque da teoria dos problemas capciosos é duplo; ele recai explicitamente sobre o que nós entedíamos até então como a definição prévia de um problema e implicitamente sobre a própria noção de modelo, isto é, de plano a ser posto em prática. A primeira característica dos problemas capciosos enumerado por Rittel e Webber já é bastante esclarecedora: “Não há formulação definitiva para um problema capcioso […] A informação necessária ao entendimento do problema depende da ideia que se tem de como resolvê-lo” (Ibidem, p. 161, tradução minha). Portanto, a negação da sequência lógica da declaração ao modelo, revela que, ao descrever os problemas menores presentes em projetos de base de dados, poderíamos atentar para os problemas que disciplinas mais complexas – como a política social de estado – já encontraram. Em suma, precisamos aceitar a possibilidade de que o projeto não se esgote com a validação, o desenvolvimento e a aplicação de um plano, mas dependa fundamentalmente dos efeitos que produz a posteriori a despeito das nossas declarações.
Por isso não basta se apoiar numa definição formal de design como a de William R. Miller, concluindo que uma base de dados é “alguma coisa criada por um processo de pensamento” (Miller, p. 1). É preciso ir além e reconhecer que mesmo um projeto com pequenas dimensões tem, como projeto, sérias implicações sobre o modo como entendemos o que seja um problema. Com a teoria dos problemas capciosos fica evidente que é pouco provável que se tenha clareza sobre os efeitos que a organização de dados proposta possa ter, ou mesmo se ela está à altura do que se propõe. Por isso reafirmo que, como mera iniciativa, esta proposta já está justificada.
A base de dados se propõe a organizar todas as fontes de informação existentes, em acervo ou não, sobre a história do Centro Universitário Maria Antonia. Por fonte de informação entende-se todo material ou ocasião que trate, exclusivamente ou não, dessa história. Caso se possua o material em acervo, a base permitirá conhecer a quantidade e a localização de todos os exemplares e cópias. Espera-se que o banco de dados seja administrado por uma instância independente – ligada ao Centro ou não –, e os dados acessados anônima e publicamente na íntegra.
A base de dados segue o modelo de dados do tipo relacional, concebido por Edgar Frank Codd em 1970, que determina que todos os dados estão organizados em listas, e agrupados por relações que se utilizam de chaves. Nesse modelo é possível acessar os dados por múltiplas vias, ao contrário do modelo hierárquico. Não se considerou nesta proposta limitações de nenhum Sistema Gerenciador de Banco de Dados nem de nenhuma linguagem de programação, visto que o modelo é “uma representação abstrata dos diferentes conjuntos de dados que devem ser mantidos e do modo como eles são relacionados entre si […], totalmente independente de qualquer tipo de implementação” (Churcher, p. 182).
Para determinar o suporte necessário ao banco de dados é preciso considerar duas variáveis: a frequência das consultas e o volume de dados armazenados. Ambas dependem das decisões e ações dos atores: dezenas de consultas poderão ser feitas pelo mesmo usuário em poucos minutos, da mesma forma que novas fontes de informação podem ser produzidas semanalmente. Logo, a única maneira de estimar o tamanho do banco e da infraestrutura necessária é comparando-o a outros projetos similares já em funcionamento. Até agora não encontrei nenhuma outra base de dados como a proposta e por isso me abstenho de fazer projeções.
Nesta proposta precisei batizar as fontes de informação – como edições, matérias, imagens etc. –, assim como os meios de acessá-las – através de etiquetas, coleções, línguas etc. Chamei de “item” tanto o conjunto de fontes de informação quanto cada meio de classificação e consulta das fontes. Por conseguinte chamei de “subitens” as subdivisões de cada item. Os demais nomes – como “classe”, “atributo”, “relação” e “cardinalidade” – advêm do vocabulário comum aos projetistas de base de dados (ver Alves e Churcher)
Apesar de a base de dados ser sobre a história do Centro, daí não se segue que os dados ou as informações sejam históricas. É preciso dizer de forma mais exata que os dados são de interesse histórico, e que essa história não possui fronteiras que a delimitem claramente – ela mais se parece com um ponto focal, onde o campo abrangido se expande ou se contrai dependendo do interesse do pesquisador.
Contrabalançando a flexibilidade dos interesses históricos, o projeto permite que os gerentes do banco classifiquem as fontes de informações de acordo com certo grau de relevância. Paradoxalmente, essa relevância, entretanto, depende inteiramente do interesse da pesquisa e não poderia ser predeterminada sem contestação. Logo, contra o excesso de arbitrariedade dos gerentes, o grau de relevância de uma fonte é determinado aqui em função de três informações mais ou menos objetivas: sobre o que é a fonte, se ela contém informações sobre o Centro, e qual é a sua origem. Por exemplo:
grau | relevância | assunto | conteúdo | origem |
---|---|---|---|---|
5 | muito relevante | o Centro | sobre o Centro | Centro |
4 | muito relevante | o Centro | sobre o Centro | outra instância |
3 | relevante | outro | sobre o Centro | Centro |
2 | relevante | outro | sobre o Centro | outra instância |
1 | pouco relevante | outro | sobre outro assunto | Centro |
0 | irrelevante | outro | sobre outro assunto | outra instância |
Considera-se que o banco de dados permitirá a localização das fontes de informação em acervo. Todas as cópias e exemplares das fontes presentes em acervo deverão ter um código identificador e um endereço únicos. No caso das cópias digitais esse identificador poderá ser o próprio nome do arquivo acompanhado da extensão, conhecido como URN (Uniform Resource Name), e o endereço a sequência URL (Uniform Resource Locator). Exemplares físicos poderão ser etiquetados com um código, e seu endereço poderá ser a concatenação de compartimentos (eg. “predio/sala/estante/prateleira/caixa/pasta”). Em uma consulta será possível, unindo o endereço e o código, contar e listar um a um todos os exemplares e cópias de determinada fonte de informação.
De acordo com este projeto, os dados estarão integralmente disponíveis na internet. Isto é, a estrutura da base de dados não prescreve nenhum estágio intermediário entre a inserção dos dados e sua publicação, tampouco uma etapa de validação dos dados ou dos registros. Se por um lado essa decisão põe em risco a consistência e a integridade dos dados, por outro ela expõe a confiança depositada nos pesquisadores e nos gerentes do banco.
A base de dados é projetada, programada e utilizada por diversas pessoas. Chamamos “ator” o grupo de pessoas que compartilha determinadas atribuições. Cada um dos atores mantém e usufrui do banco de dados de uma forma diferente. Entre os atores, suas tarefas e o banco há um fluxo que precisará ser descrito antes da implementação do projeto – deixo essa descrição para outra ocasião, quando as perspectivas de implementação forem mais reais. Por ora, listo, em linhas gerais, os atores já previstos.
ator | descrição |
---|---|
Projetista | aquele que identifica a necessidade de uma base de dados e concebe a sua estrutura de acordo com o propósito e os objetivos definidos por uma instância autônoma |
Desenvolvedor | aquele que escreve o código do banco, mantém a base de dados em funcionamento de acordo com o projeto e realiza ajustes técnicos |
Administrador | aquele que faz a manutenção da plataforma e relatórios periódicos |
Pesquisador | aquele que descobre e seleciona as fontes de informação sobre a história do Centro |
Gerente | aquele que alimenta o banco de dados de acordo com classes, atributos e relações descritos no projeto |
Usuário | aquele que consulta os dados |
Os atores exercem uma série de atividades dentro do banco de dados e em relação a ele. Para manter e usufruir dos dados, os atores precisam conhecer suas atribuições. Já se prevê os seguintes casos de uso, indispensáveis à futura descrição do fluxo de trabalho:
ator | caso de uso |
---|---|
Projetista | |
documenta o projeto da base de dados | |
expande o projeto da base de dados de acordo com o propósito e a necessidade | |
Desenvolvedor | |
escreve o código do banco de dados | |
relata erros e inconsistências de projeto | |
Administrador | |
realiza testes de consulta e performance | |
administra a hospedagem do banco de dados | |
relata erros e inconsistências de projeto e de código | |
Pesquisador | |
indica novas informações a serem cadastradas | |
indica correções e atualização dos dados | |
Gerente | |
insere os dados no banco | |
relaciona os dados entre si | |
determina as etiquetas | |
responde às dúvidas dos usuários | |
Usuário | |
consulta os dados do banco |
Em função do seu propósito, a base de dados possui um núcleo, composto pelas fontes de informação. Em torno desse núcleo existem itens, que multiplicam as possibilidades de acesso aos dados sobre as fontes. As fontes, por sua vez, também constituem um item (“fontes“), que se relaciona consigo mesmo. As demais relações são entre as fontes e os outros itens.
A ausência de relação entre os itens que não são “fontes” responde ao caráter estrito deste projeto, que quer “simplesmente trazer à tona a existência das fontes de informação”. Isso significa que se evitou ao máximo à inflação da estrutura com funcionalidades de relevância duvidosa (como a relação entre etiquetas e graus), prezando, ao invés disso, pelas relações que as fontes mantém entre si. O esquema simplificado a seguir apresenta os principais itens e relações.
Os itens se subdividem em subitens, que por conseguinte se subdividem em classes que possuem no geral atributos. Na maioria dos bancos de dados relacionais implementados as classes correspondem às tabelas, e os atributos aos campos. Alguns subitens possuem classes auxiliares, que normalizam (ver Date e Churcher) dados repetitivos, como, por exemplo, os tipos possíveis de eventos (“festa”, “simpósio”, “formatura” etc.). Os nomes das classes e dos atributos são curtos e simples, facilitando a sua identificação, procura e sufixão. Na série de tabelas a seguir utilizou-se uma fonte tipográfica monoespacejada para indicar o nome das tabelas e dos campos (estes em itálico).
Optei por descrever subitens, classes e atributos passo a passo, de modo a não perder de vista o esquema geral dos itens, caracterizado por um núcleo e uma periferia. Descrevi, no máximo, os nomes das tabelas e dos campos, a hierarquia entre tabelas e a cardinalidade das relações. Em função das diferenças entre códigos passíveis de serem utilizados na programação, deixei ao desenvolvedor do banco a tarefa de determinar as chaves extras quando necessárias e traduzir relações múltiplas e heranças em classes intermediárias.
Também representei o modelo de acordo com o padrão visual determinado pela linguagem UML (Unified Modeling Language), incluindo todas as classes, atributos, relações e cardinalidades numa única imagem, disponível em <http://www.felipekaizer.com/texts/files/uma_proposta-uml.pdf>. A meu ver, a eficácia desse modelo visual é discutível, e o seu aproveitamento fica a cargo do leitor.
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item | subitem | descrição |
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et | etiquetas | palavras e expressões aplicadas às fontes |
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ft | ||
áudios | gravações relacionadas ao assunto | |
documentos | documentos relacionados ao assunto | |
edições | livros, catálogos e outras publicações relacionadas ao assunto | |
eventos | eventos sobre o assunto | |
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matérias | artigos e notas de periódicos relacionados ao assunto | |
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endereco | um endereço completo com CEP |
As relações são descritas também passo a passo para que não se perca de vista as relações básicas entre os itens. Explicitei a cardinalidade entre as classes privilegiando a leitura da relação da esquerda para a direita.
item | relação | item |
---|---|---|
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Nesse exemplo, para tornar mais explícita as relações entre dados, simulei as características da linguagem MySQL, convertendo as classes em tabelas e os atributos em campos. Do mesmo modo, transformei as heranças entre sub e superclasses em relações entre tabelas com cardinalidade 0:n-1:n, substitui relações ?:n-?:n por tabelas intermediárias e acrescentei quando necessário campos de chaves integrais únicas que não constam no modelo de dados original, indicando as chaves estrangeiras entre parênteses.
Todos os itens e subitens da proposta estão descritos a seguir, assim como as relações típicas entre eles. Omiti, no entanto, a maioria dos atributos de pessoas, com o intuito de manter o exemplo o mais simples possível. Para demonstrar as principais vantagens e limitações da base de dados, aproveitei-me de duas fontes de informação existentes: uma exposição ocorrida em 2003 (precedida por um workshop em 2001) e seu catálogo, publicado em 2004.
De fonte em fonte. Com as relações previstas entre as fontes de informação é possível, nesse exemplo, encontrar catálogos em função de exposições e vice-e-versa. Também é possível descobrir as relações entre eventos, como exposições, mesas-redondas, formaturas, festas, shows e performances.
Fontes em acervo. A superclasse ac_acervo lista múltiplas cópias e exemplares da mesma fonte de informação, sem que para isso seja preciso alterar um atributo da fonte. Na simulação encontram-se um exemplar e duas cópias digitais (uma local e outra num servidor da internet) do mesmo catálogo.
Coleções, etiquetas e línguas. Da perspectiva da base de dados cada fonte de informação pode compor múltiplas coleções, ser classificada por múltiplas etiquetas ou fazer uso de múltiplas línguas, sem redundância ou inconsistência dos dados. Em contrapartida, uma consulta por coleção, etiqueta ou língua pode levar a múltiplas fontes.
Inúmeras participações. Com classes de participação para cada fonte de informação é possível indicar múltiplas participações sem a repetição dos dados por pessoa. Isto é, no exemplo a mesma edição contém 9 autores, 4 detentores de copyright, 7 tradutores e 7 patrocinadores. Reciprocamente, o mesmo Andreas Knitz é um dos autores e detentores do copyright da publicação, um dos artistas da exposição e um dos participantes do workshop associado a exposição.
Participantes imprevistos. Com a classe ps_part é possível acrescentar infinitamente novas formas de participação, suscintadas por vezes inesperadamente pelas fontes de informação ou pelo interesse de novos pesquisadores. Ao contrário das bases usuais de dados, com este modelo é possível indicar, por exemplo, os designers e impressores das publicações, os palestrantes e ouvintes das aulas, os retratados e autores das fotos.
Relevâncias. A mesma fonte de informação pode ter pesos diferentes para cada pesquisa, porém essa estrutura não pode acompanhar dinamicamente essas variações. Ela pode, ainda assim, a partir da origem e do conteúdo das fontes, discriminar as fontes entre si sem considerar o histórico das pesquisas. Dentro desse limite pode-se cadastrar um grande espectro de informações – inclusive aquelas consideradas irrelevantes – sem homogeneizar os resultados das buscas.
Dados pessoais. Como essa proposta visa somente à indicação da existência das fontes de informação, dados instáveis e pouco relevantes a história do Centro, como endereços, telefones ou e-mails, foram desprivilegiados ou suprimidos. Mantiveram-se somente os endereços dos eventos e das pessoas jurídicas – eventualmente repetidos –, sem a sua decomposição em logradouro, número, bairro, complemento, cidade, estado, país, CEP.
Acervo despadronizado. Não foi prevista uma nomenclatura para os endereços e códigos dos exemplares físicos das fontes, ficando a cargo dos gerentes uma padronização externa ao banco. Porém, a simplicidade dos atributos endereco e codigo nas duas classes de acervo, tornou-as plenamente compatíveis, o que, por sua vez, permitiu a indexação simultânea de objetos e arquivos da mesma fonte.
Campos vazios. Partindo do pressuposto de que o banco de dados estará sempre em construção, assume-se que grande parte dos campos pode permanecer indefinidamente vazia em função das lacunas nas pesquisas. Isso significa que, na escala de formulários normais do modelo relacional (ver Churcher e Date), poucas classes ultrapassarão o primeiro ou o segundo formulário normal.
Atributos reduzidos. Com se trata de uma base de dados que privilegia extensivamente as relações entre as fontes de informação e não intensivamente um gênero específico de fonte, muitas delas têm campos limitados a informações mínimas para a sua identificação, como apenas o título em material gráfico.
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14 | Imprensa Oficial |
Contra a sombra de dúvida que ainda pode pairar sobre a pertinência desta proposta, eu poderia recapitular tudo aquilo que foi dito na Introdução e na Parte 1; ou poderia me recusar a dar mais explicações sobre o que pretendo alcançar com este projeto, invocando assim o poder da “grande recusa”, conhecida ao menos desde 1968 e transubstancializada hoje nos movimentos populares de ocupação do espaço público em todo o mundo. Mas eu ainda poderia pedir tempo para a dúvida, tal como Daniel Cohn-Bendit ao ser interpelado por Jean-Paul Sartre em 20 de maio de 1968: “[…] apresentaremos propostas, mas nos dê um tempo. Primeiro tem-se que falar, refletir, buscar fórmulas novas. Vamos encontrá-las. Mas não hoje” (Sartre & Cohn-Bendit, p. 21).
Este projeto se vale desse tempo – entre uma curiosidade vaga e o plano de implementação de uma ferramenta, esta proposta também é para que se fale, se reflita e se busque novas formas de ação. Afinal, o que toda recusa (grande ou não) almeja, resistindo a tentação das soluções imediatas, é recuperar para aqueles que estudam e trabalham o controle do próprio tempo. Este, em contrapartida, exige certo zelo, para que não o percamos desatentamente. Isto é, para que possamos gerir o tempo é preciso conceber alguma organização que nos poupe do seu desperdício.
Mas não parece que a ideia de organização contradiz frontalmente a espontaneidade característica dos levantes de 1968? Somos obrigados a reconhecer que de fato as agitações simultaneamente globais prescindiram de um comando central – o que sempre esteve de acordo com seu caráter contestatório e antiautoritário. Mas daí não podemos deduzir que esses movimentos eram desorganizados; isso seria confundir organização com autoridade, crendo que por dispensar as autoridades tais movimentos se manteriam só com a energia liberada em sua explosão inicial. A efemeridade demonstrada por eles, por outro lado, não é um sinal de fracasso; como Cohn-Bendit admite, aquelas ações não duraram, mas deixaram entrever uma possibilidade ao abrir uma fenda (Sartre e Cohn-Bendit, p. 23). Logo, acompanhando a série de distinções feitas ao longo do trabalho – sobretudo no que diz respeito às possíveis acepções da palavra “política” – não podemos deixar coincidir “autoridade” e “organização”. A despeito da evidência de que toda autoridade necessita de alguma forma de organização para se efetivar, nem sempre um ataque direto a esta provoca um abalo daquela. Assim, ao que parece, as ações diretas que se deram com tanta intensidade e frequência a partir da década de 1960 foram bem-sucedidas em entender essa diferença, ignorando as estruturas convencionais de contestação não para se fazer ouvir pelas autoridades que as controlam, mas, simplesmente, por não reconhecê-las mais sequer como dignas de atenção. Por outro lado, a recusa do establishment não eliminou por si só os problemas que esse establishment bem ou mal resolvia, como o atendimento imediato das reivindicações da classe operária. Para ser mais preciso, o novo estilo de ação nos ensinou a contornar a autorização para agir. Contudo, se os estudantes não pediram licença para se mobilizar, a mobilização em si pediu-lhes em troca alguma organização, ainda que nascida da pura desorganização:
[…] é necessário evitar a criação imediata de uma organização ou definir um programa, o que seria inevitavelmente paralisante. A única chance do movimento é justamente essa desordem que permite às pessoas falar livremente e que pode desembocar, por fim, em certa forma de auto-organização. (Sartre & Cohn-Bendit, p. 20, grifo meu)
Como fim possível, o que essa organização autoimposta leva a pensar é que a ação direta não tem apenas um conteúdo positivo – o de estopim de mudanças eventualmente mais drásticas e perenes –, mas, como pura ação, encontra em si mesma uma imprevisibilidade fundamental. Por isso, não deveríamos nos decepcionar com as ações que levam a nada, mas prezá-las pelo que elas são e não apenas pelo que visam. O abismo que se abre, portanto, entre uma ação e seus efeitos, nos leva a definir por ora a “ação direta” tão-somente como “ação não protocolar”, isto é, como ação fora de um roteiro que lhe assegure de antemão o sucesso esperado. Do mesmo modo, a incerteza a respeito do “desembocar” das ações se reflete sobre as considerações sobre seu início possível. Como já foi dito, este projeto se apoia numa inversão deste tipo: das intenções à organização, sim, mas por que não da organização às intenções? Quem nessa desordem primordial estaria autorizado a dizer o que é e o que não é uma iniciativa? Como eu poderia ignorar a priori o poder de mobilização de uma ferramenta que facilitasse o acesso a uma parte (ínfima que seja) da história do país?
Assim poderíamos especular se uma estrutura abstrata e neutra não poderia adquirir uma qualidade política em função da simples quantidade de informações que ela suporta. Pragmaticamente falando, ao exceder o domínio da sua policy, uma estrutura como essa poderia ser política pelos efeitos políticos que tem. Por outro lado, ontologicamente falando, a corrupção do estatuto dessa ferramenta se daria em benefício de quem? Do público. Dos usuários e pesquisadores – se quisermos utilizar um vocabulário previamente estabelecido –, afinal, o que o banco mantém e como ele o faz depende das decisões de múltiplos atores. Seus papéis, entretanto, não estão terminantemente definidos, e basta se debruçar um pouco sobre os detalhes do modelo proposto para deduzir que, à medida que o interesse cresce, o número de pesquisadores tende a se igualar ao número de usuários, suprimindo por completo o papel do gerentes e redistribuindo suas atribuições. Logo, o que essa tendência indica senão a formação daquilo que se costuma chamar de uma comunidade? Se no futuro qualquer pessoa puder contribuir com suas pesquisas para o crescimento e a manutenção do banco, então teremos uma comunidade autogerida em torno da história do Centro Universitário Maria Antonia. Qual outro exemplo de nossa época ilustra esse modo de colaboração melhor que a Wikipédia?
[…] a comunidade é a razão pela qual a Wikipédia funciona: um grupo de pessoas que tomou o projeto para si e que se lançou à tarefa de torná-lo bem-sucedido. […] Assim como o sucesso da Wikipédia como enciclopédia depende de um mundo inteiro de voluntários para escrevê-la, seu sucesso como organização depende de uma comunidade de voluntários para gerenciá-la. (Swartz)
Mais importante do que concordar com o programador e ativista americano Aaron Swartz é perceber contra o que ele se opunha em seu argumento. Seu objetivo explícito nesse texto (até certo ponto panfletário) é o de resistir à concentração de poder decisório no conselho da Wikipédia. Escrito na ocasião da sua candidatura ao mesmo conselho, Swartz se dizia disposto a estimular a descentralização radical das contribuições à enciclopédia, como que temendo a emergência de um ator dominante dentro da comunidade. Não por coincidência falta nesta proposta a descrição de um “mantenedor”, cujo caso de uso poderia ser “financiar os custos de desenvolvimento e manutenção do banco de dados, remunerando o tempo daqueles que se dedicam a ele”. Minha impressão é a de que Swartz percebeu que tal mudança na política original da Wikipédia poderia oferecer um grande risco: centralizadas as decisões sobre a enciclopédia não surpreenderia se daí, para remunerar o tempo dos seus contribuintes mais dedicados, se cobrassem do restante dos usuários o acesso às informações. Esse risco não está explícito no texto, mas ele nos ajuda a problematizar aquilo que foi citado na Introdução como “uma instância que centralizasse e relacionasse essas informações”.
Afinal, pode-se perguntar o que deveria vir primeiro: um centro de referência que reunisse pesquisadores em torno de si ou uma comunidade que criasse para si uma ferramenta de gerenciamento de informações? A pergunta é completamente inadequada, pois apela novamente a existência de um passo a passo. O que podemos perguntar, ao contrário, é o que o público pode fazer com uma estrutura desse tipo, e de que maneira ela responde às suas ações. Por isso não é contraditório propor uma instância centralizadora descentralizada, isto é, que agrega os dados num único local, mas que é mantida por um esforço coletivo não localizado – um centro sem centro totalmente sob o controle de um contingente de pessoas unidas por um interesse comum, a saber, a história do Centro Universitário Maria Antonia e dos acontecimentos ao seu redor.
Porém, como Swartz adverte, comunidades são difíceis de criar. Acrescento até que, assim como a confiança mútua entre os seus membros dificilmente pode ser institucionalizada, muito possivelmente as comunidade não são projetáveis. Isso constitui não só um dilema próprio à dimensão política da atividade de projeto, mas também um problema capcioso para toda forma de organização que, para se manter, custa à comunidade um tempo além daquele para usufruir dos benefícios que a própria organização lhe oferece. Por esse motivo os membros da comunidade são soberanos sobre suas estruturas, inclusive para se desfazer delas, reconhecendo que, 1. como pura forma de organização, um banco de dados, por exemplo, não pode fazer pelos seus usuários mais do que eles podem fazer por si mesmos, e 2. como ferramenta ele apenas auxilia a comunidade na tarefa incessante atribuída a si mesma, a saber, aquela de não esquecer sua história.
E já que o limite desta proposta não excede o limite de qualquer outro projeto, não pretendo descrever como e por que deveria existir uma comunidade de pessoas interessadas na história do Centro Universitário Maria Antonia. Se o fizesse estaria me antecipando ao decidir em seu lugar pela criação da ferramenta proposta – no entanto quem garante que essa precipitação já não é fruto de um interesse geral? De todo modo, espero com este projeto poupar futuras iniciativas dos erros que porventura cometi, provando que o tempo não transcorre sem algum proveito.
Agradeço, em primeiro lugar, aos meus orientadores Maria Argentina Bibas e Minoru Naruto pela confiança e atenção dispensadas. Em segundo lugar, a Tuca Capelossi, Rodrigo Vazquez e Thiara Grizilli pelas horas de atenção. Em especial aos amigos Victor Bergmann e Gustavo Ferreira, cujo profissionalismo e expertise foram indispensáveis. A Maíra Lioi por recordar de Aaron Swartz (1986-2013). Às amigas Ana Sartori, Aninha de Carvalho e Luiza Crosman pelo apoio incondicional. Por fim, a Alícia Toffani pela revisão impecável do texto.
Tina e Minoro,
escrevo essa longa mensagem porque vejo que meu trabalho de final de curso, mesmo incipiente, já está mudando (como é natural). Essa é uma mensagem, portanto, um pouco de atualização e um pouco de auto-organização. Peço perdão por fazer isso aqui e não nas aulas de coordenação (como seria o esperado), mas sinto necessidade de ser mais preciso, e de apresentar o que estou pensando com mais clareza. Por favor me avisem se esse canal de comunicação for incoveniente para vocês.
Sumarizando tudo que eu li/pesquisei/conversei/anotei até agora, vou tentar retraçar aqui o meu processo.
Se vocês se lembram comecei anunciando um interesse pelo prédio do CEUMA, pela história dos prédios, pelos reflexos e eventos de 68 na Rua Maria Antônia, e também pelo que significa, no contexto atual (para a minha geração) essa história e esses espaços.
Li não só sobre exposições feitas no Mariantonia a partir dos eventos de 68 (o catálogo da exposição “A Alma dos Edifícios”), mas também (como vocês indicaram) um pouco sobre a origem do departamento de filosofia na USP e os primórdios da universidade. Além dos livros mais factuais sobre a Guerra da Maria Antônia, que eu ainda estou lendo.
Procurei a Tuca e fui na administração pela primeira vez. Ela me contou resumidamente a história dos edifícios, me mostrou a linha do tempo que ela estava montando, e também me mostrou a gigantesca pasta sobre 68 (com fotos, artigos, livros fora de catálogo, etc).
Essa conversa foi fundamental. Ela me convenceu de que nenhum passeio pelo prédio esclareceria qualquer coisa sobre o assunto, e isso pra mim foi um sinal de alerta. Vi fotos inéditas em cima da mesa, e me impressionei com o volume de trabalho e pesquisa já feito sobre o tema que tinham virado apenas papel dentro daquela pasta filha-única-de-mãe-solteira.
Eu tentei na hora mesmo da conversa resumir os possíveis produtos do meu trabalho. Repasso eles aqui com vocês apenas a título de registro:
Eu preciso admitir que de todas as alternativas a última tem feito mais sentido para mim. Acho que ela é uma forma de tratar do assunto sem ser fetichista. É também um projeto que lida indiretamente com o problema da imagem dentro das práticas usuais de design: será que é possível lidar com as informações antes mesmo delas precisarem ter uma expressão visual (um impresso, uma plataforma digital, etc)?
Também acho que um projeto de database design pode ser um exercício factível no tempo; eu não preciso necessariamente preencher esse banco, nem prever todas as suas instâncias. Penso numa estrutura desenhada para dar conta das relações entre suportes de categorias diferentes (fotos, artigos, autores, lugares, livros, etc). Tenho começado a estudar essa estrutura, e posso apresentar a organização dessa relação como produto do projeto (em anexo o começo de um desenho).
E, acima de tudo, quero fazer um projeto que seja útil a pessoas que, como eu, não conhecem essa história e tem dificuldade de saber por onde começar. Por isso a ideia de criar alguma ferramenta, ao invés de uma imagem ou texto que vise manter ou informar parte da história de 68. Pelo que a Tuca me falou há planos de contratação de uma biblioteconomista ano que vem, mas eu não sei até que ponto isso influe no meu exercício. Posso me concentrar tão-somente nessa pasta gigantesca, cujo conteúdo existe todo em papel, e que não possui nenhum índice. A grosso modo, a alternativa 5 é exatamente a criação de uma estrutura de índice, em primeiro lugar para esse conteúdo, e em segundo lugar, para pesquisas mais extensas feitas sobre a Guerra da Maria Antônia.
Por enquanto é isso que eu consigo apresentar a vocês. Peço desculpas novamente pela mensagem fora de hora.
muito obrigado e abraços,
Felipe Kaizer
Olá Tina, Olá Minoru,
aqui segue mais uma longa mensagem de auto-organização. Espero, novamente, que não seja incoveniente.
Visitei novamente a sala de pesquisa do Maria Antonia, mais convicto do que da última vez. Como comentei na mensagem anterior, a opção “5. Uma organização do conteúdo já existente e já possuído pelo Centro” foi a que mais me despertou interesse.
Dessa vez expliquei minhas intenção de projeto para o Rodrigo Vazquez e para a Thiara Grizilli, que agora respondem pelo Centro de Documentação Memória. Centro que até a minha última visita não existia.
Eles me contaram justamente aquilo que eu já previa pelas trocas de e-mail: os dois estão envolvidos com a pesquisa, catalogação e sistematização dos conteúdos referentes à história do CEUMA.
Bingo!
Agora eles estão, naturalmente, arrumando a casa. E aquilo que antes era uma pasta gigantesca cheia de fotos e xerox soltas, já está um pouco mais estruturado na forma de índices. Me parece que eu cheguei bem no momento em que o projeto de uma base de dados pode ser providencial. E melhor, já estou em contato com os interlocutores mais interessados do processo – são eles mesmos, o Rodrigo e a Thiara, que pesquisam e manipulam esses dados.
Acredito que essa interlocução traz uma série de vantagens para o meu trabalho:
Essa proposta fez sentido para eles também. Saí da sala com uma série de dados já listados, com modelos que eles tentaram elaborar para classificar os conteúdos, e com modelos de outras instituições para as quais eles já trabalharam (como a Biblioteca Mario de Andrade). O próximo passo é a organização dos critérios e das condições desse projeto.
Abaixo tento definir minimamente a proposta, a justificativa e o método:
Proposta (O quê?)
Fazer o estudo de uma estrutura de base de dados que possa eventualmente ajudar na catalogação e consulta indicial de documentos e publicações referentes à história do Centro Universitário Maria Antonia pelo menos até 1994 (data de reintegração do prédio ao domínio da USP).
Caso haja tempo e disponibilidade – para além do objetivo primário que e a apresentação de um plano – posso deixar a base de dados pronta para a inclusão de dados, a ser realizada pelo pessoal do CEUMA.
Justificativa (Por quê?)
Como eu já comentei, acredito na utilidade e na pertinência de se criar uma ferramenta que auxilie na busca de informações sobre essa história (que é maior do que os eventos de 1968). Antes mesmo das discussões, dos trabalhos e das exposições que comentam essa história, existe a necessidade de se viabilizar o acesso organizado às informações já existentes. Importante lembrar que esse índice é um objeto de design, tal e qual produtos, mercadorias, serviços e materiais gráficos o são, sobretudo na medida em que envolve análises e decisões formais igualmente complexas.
Método (Como?)
Aqui imagino uma mistura mais ou menos improvisada de técnicas. Certamente haverá conversas e correspondência frequente com a equipe do Centro de Documentação e Memória. Mas também há uma grande parcela de pesquisa sobre as ferramentas de construções dessa base – a princípio em MySQL, por se tratar de um sistema popular, eficiente e grátis –, e de acesso dinâmico por PHP. Recorro também, assim que possível, àlguma bibliografia sobre catalogação e biblioteconomia. Mas acredito que o dialógo com os futuros usuários, num contexto específico de validação, dará clareza para o mínimo de sofisticação que o trabalho precisa alcançar.
Imagino que se for bem sucedido esse trabalho poderá (quiça) render bons frutos à instituição. Afinal, era justamente isso que eu pretendia em todas as anteriores propostas: criar (ou ajudar a criar) alguma coisa referente ao Centro Universitário e à sua história que pudesse ao menos ser informativa. Nesse ponto, acredito que, mesmo tratando de uma ferramenta abstrata de organização de informações, o projeto continua sendo site-specific e consonante com o curso.
Farei o que puder, também, para evitar que esse trabalho se torne o trabalho da vida, como foi dito muitas vezes. Estou evitando (juro) movimentos muito complexos e objetivos irrealizáveis no tempo. Mas como estou muito envolvido com os detalhes desse trabalho, conto com o alerta de vocês em caso de exagero meu.
abraços,
Felipe Kaizer
Título: Proposta de base de dados para o Centro de Documentação e Memória do Ceuma
O trabalho se propõe a ser o plano de um índice estruturado dos documentos, fotografias, vídeos, textos etc já pertencentes ao Ceuma, sobre a história de formação e consolidação do mesmo, que se estende de meados da década de 30 até 1993 (data de reinstituição [restituição] dos prédios ao domínio da USP)
Justificativa e Histórico: Com intuito de conhecer a natureza e alguns eventos de 1968 ocorridos especificamente na Rua Maria Antonia – cuja expressão mais evidente é a “Guerra da Maria Antonia” –, comecei uma pesquisa que encontrou poucas e raras fontes de informação. Diante dessa dificuldade resolvi desenvolver um trabalho que tornasse a procura e o acesso a essas informações por outros futuros curiosos mais fácil. Para isso a proposta de uma ferramenta digital pareceu adequada, e, considerando a existência de um interesse da própria instituição e de um montante já existente de dados, julgo que seja pertinente a tentativa de propor uma arquitetura dessa informação.
Olá Rodrigo, Olá Thiara,
retomando nossa conversa sobre um projeto de base de dados para a história do Maria Antonia, queria apresentar um rascunho da estrutura que pensei até agora, e das categorias que ela dá conta.
No geral, acho que os itens que nós listamos no dia 10 de outubro correspondem praticamente com o que eu tinha em mente. São eles:
O item "depoimento" eu eliminei por ora, porque entendi que ele pode ser classificado já em qualquer uma das mídias supracitadas.
Cada um desses tipos tem seus próprios campos (que tento descrever inicialmente abaixo), mas imagino que eles tenham em comum algumas coisas:
Como conversamos os graus de relevância são definidos pela proximidade com o assunto:
No futuro esses graus podem ser importantes para buscas refinadas.
Abaixo eu tento listar alguns dos campos específicos (não os comuns, como "id", "observações", "grau da referência", "localização", "suporte", etc) por itens:
Isso não significa que todos os campos serão preenchidos na mesma tabela do item; muitos são apenas links entre tabelas diferentes.
Por exemplo: para não redundar inúmeras vezes o nome de uma editora, uma tabela separada de editoras é mantida linkada à tabela de publicações, e assim por diante.
Por isso a estrutura interna do banco não corresponde exatamente a essa lista. Ela se parece um pouco mais com o rascunho em andamento que coloquei em anexo.
Como eu conversei com vocês, é importante lembrar que ao final do trabalho eu pretendo entregar uma proposta de base de dados. Por isso encaminho abaixo a descrição do trabalho que fiz ao Minoru e a Tina, para que vocês também estejam a par:
Proposta (O quê?)
Fazer o estudo de uma estrutura de base de dados que possa eventualmente ajudar na catalogação e consulta indicial de documentos e publicações referentes à história do Centro Universitário Maria Antonia pelo menos até 1994 (data de reintegração do prédio ao domínio da USP).
Caso haja tempo e disponibilidade – para além do objetivo primário que e a apresentação de um plano – posso deixar a base de dados pronta para a inclusão de dados, a ser realizada pelo pessoal do CEUMA.
Justificativa (Por quê?)
Como eu já comentei, acredito na utilidade e na pertinência de se criar uma ferramenta que auxilie na busca de informações sobre essa história (que é maior do que os eventos de 1968). Antes mesmo das discussões, dos trabalhos e das exposições que comentam essa história, existe a necessidade de se viabilizar o acesso organizado às informações já existentes. Importante lembrar que esse índice é um objeto de design, tal e qual produtos, mercadorias, serviços e materiais gráficos o são, sobretudo na medida em que envolve análises e decisões formais igualmente complexas.
Método (Como?)
Aqui imagino uma mistura mais ou menos improvisada de técnicas. Certamente haverá conversas e correspondência frequente com a equipe do Centro de Documentação e Memória. Mas também há uma grande parcela de pesquisa sobre as ferramentas de construções dessa base – a princípio em MySQL, por se tratar de um sistema popular, eficiente e grátis –, e de acesso dinâmico por PHP. Recorro também, assim que possível, àlguma bibliografia sobre catalogação e biblioteconomia. Mas acredito que o dialógo com os futuros usuários, num contexto específico de validação, dará clareza para o mínimo de sofisticação que o trabalho precisa alcançar.
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Rodrigo me falou de uma tese que apresenta modelos de catalogação de materiais gráficos. É por acaso o "Organização de um acervo de cartazes sob uma perspectiva de design gráfico”, escrito por Regina Cunha Wilke e Priscila Lena Farias? Lendo o modelo do Biblioteca Mário de Andrade achei um pouco excessiva – para os nossos propósitos – a catalogação dos "patrocinadores", "clientes", "responsáveis", entre outros critérios; sobretudo se temos em vista que uma complexidade igual ou maior poderia ser encontrada em praticamente todos os itens (frente e verso do livros, dimensões físicas dos artigos, etc)
Ainda estou estudando as referências que vocês já me passaram – vamos revisando os itens e os critérios de classificação. Ao final do projeto pretendo descrever item a item, e campo a campo, o que eles significam. Peço, até lá, que, se vocês tiverem o arquivo ou a referência, que me enviem, assim como outros modelos e teses sobre o assunto.
Esse trabalho é naturalmente longo, e de difícil maturação. Vou tentar organizar uns testes, mas até lá gostaria de ouvir a opinião de vocês sobre esses estudos.
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Uma última coisa:
Vocês tem algum contato na B. Mário de Andrade, que possa me receber para uma pesquisa rápida sobre o sistema de catalogação deles?
abraços,
Felipe Kaizer