Warhol Warhol: paródia, pastiche e tautologia

Felipe Kaizer


Texto produzido para a disciplina Fundamentos Sociais do Design: o Design entre a Modernidade e a Pós-modernidade da Profª Drª Maria Irene Szmrecsányi no curso de pós-graduação Design e Humanidade no Centro Universitário Maria Antonia USP em maio de 2012.

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Why should I be original? Why can I be non-original? – Andy Warhol

Se podemos encarar como pós-moderno “o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX.” (Lyotard, 2006, p. xv), então estamos convidados a estudar os efeitos dessas transformações nas mais diversas áreas da cultura, e não apenas na ciência, na literatura ou nas artes. Se realmente se trata do “estado da cultura”, então podemos eleger, por nossa própria conta e risco, um dos seus muitos campos como sendo de batalha “contra às formas estabelecidas do modernismo canônico” (Jameson, 1993, p. 26).

Essa escolha, no entanto, só pode permanecer uma escolha enquanto não assumimos como privilegiado um determinado campo de discussão. Nosso pressuposto neste breve texto é de que a escolha pela arte – mais especificamente algumas obras de Andy Warhol nos EUA na década de 1960 – como lugar possível da crítica pós-moderna à modernidade – e consequentemente também ao modernismo – não é feita com o intuito de demonstrar a proeminência da arte sobre qualquer outro campo. Afinal, como seria possível discernir um porta-voz da cultura em meio ao vozerio de discursos pós-modernos? [1] É importante ter em vista que nossa escolha como escolha impossibilita que o “estado da cultura” nos apareça como um todo coeso, considerando que a todo ponto de vista compete necessariamente um ponto cego.

Qual é então o ponto cego escolhido? Abrimos mão conscientemente das considerações basais sobre as formas de produção e circulação de valores no circuito da arte. Em poucas palavras, estamos admitindo de antemão a arte como “fenômeno economicamente condicionado”, segundo a partilha feita por Max Weber dos objetos da sociologia:

Estes objetos do nosso conhecimento [instituições que foram criadas ou que são utilizadas conscientemente para fins econômicos] podem ser chamados, em sentido restrito, de processos ou instituições “econômicas”. A esses acrescentam-se outros, como, por exemplo, acontecimentos da vida religiosa que não nos interessam, ou que, pelo menos, não nos interessam em primeiro lugar, do ângulo do seu significado econômico e em nome dele, mas que, em determinadas circunstâncias, podem adquirir um significado econômico desse ponto de vista, considerando-se que deles resultam determinados efeitos que nos interessam em uma perspectiva econômica. São, portanto, fenômenos “economicamente relevantes”. E, por fim, entre os fenômenos que não são “econômicos”, segundo o sentido que lhes atribuímos, encontram-se outros cujos efeitos econômicos pouco ou nenhum interesse oferecem para nós, como, por exemplo, a orientação do gosto artístico de uma determinada época. No entanto, tais fenômenos revelam, em determinados aspectos significativos de seu caráter, uma influência mais ou menos intensa de motivos econômicos. Em nosso caso, talvez, por meio da composição social do público interessado em arte, são fenômenos economicamente condicionados. (Weber, 2001, p. 118) 

Nessa classificação não encontrarmos, entretanto, qualquer impedimento a uma investigação sobre “o estado da cultura” pós-moderna à luz de fenômenos não econômicos. Assim, nossa primeira hipótese é a de que, por mais desprivilegiado que seja, o gesto artístico pode conter, em seus próprios termos, uma complexidade equivalente àquela encontrada nos movimentos socioeconômicos. A segunda hipótese é a de que, na década de 1960, a arte sofreu um abalo semelhante àquele sentido em outros movimentos sociais. Mas seria justo pesar as vicissitudes da arte e as transformações no restante da sociedade na mesma balança? Talvez a nossa escolha se justifique se recordarmos que nós, pós-modernos, ainda não fomos capazes de perdoar a arte por almejar – pelo menos desde o modernismo do século XX e quiçá desde o século XVIII – a autonomia de legitimação em relação a esse restante. Não podemos negar que a ideia de uma arte independente da sociedade, isto é, de uma arte pela arte, ainda nos incomoda. Marshall Berman vê na pretensa autonomia da arte a prévia de uma cisão mais profunda:

O modernismo, então, se torna a procura de uma arte-objeto pura, autorreferida. E assim foi: a adequada relação entre arte moderna e vida moderna veio a ser a ausência de qualquer relação. (Berman, 1986, p. 29) 

Essa ausência de relação, entretanto, longe de representar um fracasso da capacidade da arte de nos falar, é, de fato, o sintoma de que ela ainda nos ocupa sobretudo quando nos frustra. Num certo sentido, a arte contemporânea, que é alvo constante das nossas críticas, prova-nos, como alvo por nós constantemente escolhido, que a arte ainda interessa. Encontramos tal interesse, por exemplo, na veemência do comentário de Fredric Jameson:

[…] a arte contemporânea ou pós-modernista deverá dizer respeito à própria arte de uma nova maneira; […] uma de suas mensagens essenciais há de implicar o fracasso necessário da arte e do estético, o fracasso do novo, o aprisionamento no passado. (Jameson, 1993, p. 31) 

Como um fenômeno de terceira categoria é capaz de nos provocar esse tipo de reação? Partimos da constatação de que a arte nos interessa socialmente justamente por sua singularidade: esperamos dos seus objetos mais do que os seus valores de troca.

O que faremos a seguir é tentar encontrar na obra de Andy Warhol uma radicalização das categorias impostas pela arte moderna, tal que sejamos capazes de entender porque alguns autores dão por encerrada com esse artista uma longa linhagem de produção artística. Veremos como em duas obras de Warhol é possível pensar os conceitos de obra de arte e pós-modernidade lógico e historicamente.

Do pastiche ao cânone

Retomemos ao problema da arte “autorreferida” colocado por Berman. Uma fórmula possível para esse problema inclui a ideia de circuito. Com Weber vimos na circulação dos objetos de arte “uma influência mais ou menos intensa de motivos econômicos”. Esta é, para todos os efeitos, a nossa concepção usual da importância do mercado da arte para a arte contemporânea – importância indiscutível nas considerações sobre a pop art, do qual Warhol é um dos expoentes.

Mas Fredric Jameson foi capaz de lançar uma nova luz sobre a questão da autorreferencialidade. Em um breve comentário sobre a diferença entre paródia e pastiche, o autor identifica no último a excepcionalidade de um procedimento de imitação cujo agente imitador não se vê livre de ser ele mesmo objeto de uma nova imitação. Isto é, se na paródia tínhamos um terreno aceito como neutro – um “sentimento ainda latente de que existe algo normal(Jameson, 1993, p. 29) – a partir do qual a imitação poderia ser uma ferramenta para o sarcasmo e para a depreciação, no pastiche a própria ideia de campo neutro está em xeque, e portanto também “a própria possibilidade de qualquer norma linguística nos termos da qual fosse possível ridicularizar as línguas particulares e os estilos idiossincráticos” (Ibid., p. 29). Podemos antever a radicalidade desse argumento: na pós-modernidade estaria em risco a nossa própria capacidade de apenas imitar, tendo em vista que a própria “normalidade” poderia ser ela mesma resultado de um pastiche.

Então, o que nós, pós-modernos, estaríamos fazendo mediante os nossos pastiches de modernismo? A resposta aparentemente paradoxal seria, ao contrário de nada demais, talvez algo como reabilitar, no próprio gesto de cópia, o modernismo como campo neutro. Arriscamos dizer, portanto, que a passagem da paródia ao pastiche não pode ser entendida simplesmente como súbito desaparecimento do solo comum a partir do qual todas as manifestações alheias poderiam ser ridicularizadas, mas, sim, na consciência de que invocamos com nossos pastiches um “modernismo canônico” (Jameson) ou um “modernismo clássico” (Berman) como solo comum a ser revogado. [2] 

Uma investigação possível a partir daí seria a filológica, caracterizada pela busca de argumentos e pensamentos produzidos na modernidade e no modernismo que comprovassem a pretensão ao estabelecimento de um cânone sobretudo estético. Mas, dadas as dimensões diminutas deste texto, tomaremos um atalho pelo nosso contemporâneo Warhol e pela abalo provocado por sua obra na ideia desse solo comum.

Das caixas às latas

A primeira obra a ser citada é a Campbell’s Soup Cans, exposta na Ferus Gallery, em Los Angeles, entre 9 de junho e 4 de agosto de 1962:

Trabalhando a partir da lista de sabores do fabricante de sopa, Warhol fez uma pintura de cada item, reproduzindo os rótulos quase exatamente como eram impressos e isolando-os sob um fundo branco. (Larrant-Smith, 2010, p. 205) 

A segunda obra é a Brillo Boxes, exposta na Stable Gallery, em Nova York, entre 21 de abril e 9 de maio de 1964, que compunha:

A exposição de suas caixas (reproduções feitas com madeira compensada e pintada de caixas de papelão para produtos de supermercado, como pastilhas de sabão Brillo, ketchup Heinz, Del Monte, Corn Flakes Kellog’s e suco de tomate Campbell’s) abriu na Stable Gallery, com as caixas empilhadas em colunas como num armazém. (Ibid., p. 209) 

Sucintamente podemos dizer que essas duas obras não são vistas aqui como meras expressões de um movimento manifesto dentro da arte, [3] mas como obras singulares que fazem reverberar o problema da autorreferencialidade e dos pressupostos cânones modernos. Nosso palpite é de que essa capacidade não deve ser atribuída ao objeto da cópia – a mercadoria –, e, sim, a uma forma de cópia talvez inédita até a pós-modernidade.

Com intuito de verificar se o objeto da cópia não é realmente definidor, podemos tentar descrever a estratégia de Warhol como paródia e como pastiche. Como paródia o procedimento de cópia constituiria, a partir do campo salvaguardado da arte, uma espécie de crítica substancial à mercadoria e ao sistema de valorização do valor que a tornaria possível. Como pastiche, o procedimento de cópia faria não só a acusação da inconsistência da mercadoria, mas também da própria arte como mercadoria – arte que dessa vez não poderia se ver isenta do circuito de geração de valor dos seus próprios objetos.

Aqui gostaríamos de introduzir uma terceira categoria que talvez nos ajude a superar o problema de uma autorreferencialidade (da obra de arte) que ainda se vê às voltas com uma referência que lhe é extrínseca (a mercadoria). Essa terceira categoria é a estrutura lógica da tautologia.

Lembremos que um dado inegável das obras em questão é a repetição. Tanto as imagens das latas quanto os protótipos das caixas se estruturam por repetição: a imagem vista aqui é idêntica àquela logo a seguir. Também a imagem vista aqui é idêntica àquela nas prateleiras dos supermercados. A crítica Anne Cauquelin sugere que, com Warhol:

[…] é preciso cobrir as paredes, repetir incessantemente, saturar. Porque a comunicação funciona como tautologia, como redundância. “Uma lata de sopa Campbell’s é uma lata de sopa Campbell’s é uma lata de sopa Campbell’s”. “Os McDonald’s são McDonald’s que são McDonald’s: O que há de mais bonito em Tóquio é o McDonald’s, o que há de mais bonito em Estocolmo é o McDonald’s, o que há de mais bonito em Florença é o McDonald’s. Pequim e Moscou ainda não têm nada de bonito. (Cauquelin, 2005, p. 113) 

Tautologia aqui é sinônimo de mera repetição. É pura redundância; a afirmação de que uma lata de sopa Campbell’s é uma lata de sopa Campbell’s nada afirma – nem sobre a lata de sopa Campbell’s que é a lata de sopa Campbell’s, nem sobre a obra que é a lata de sopa Campbell’s. Dito de outro modo, a tautologia é uma afirmação que afirma o óbvio. Com Warhol, a obra de arte não só toma por motivo o novo lugar-comum – a mercadoria como elemento natural, o capital como natureza –, mas afirma a si mesma como arte como se se tratasse de uma obviedade. Nesse ponto, o pastiche revela que nada é óbvio, isto é, que não há campo seguro de onde possamos criticar sem ser criticados, e a paródia aparece retrospectivamente como uma forma ingênua do pastiche. Se o objeto de arte a partir de Warhol se autodetermina sem apelar a nenhum critério (estético, técnico etc.), que há de óbvio nisso? Por outro lado, um objeto de arte que prescinde de elementos artísticos é realmente impensável? A obra de arte é obra de arte por conter algum conteúdo artístico? Aproximamo-nos com essas dúvidas da fórmula derradeira da autorreferencialidade da arte contemporânea: arte é arte. Diante disso, nossa segunda hipótese indica que essa crise interna ao campo da arte diz respeito não apenas aos artistas, críticos e historiadores do seu circuito. É uma crise que exige a nossa desconfiança em relação à crítica como observadora externa dos fenômenos culturais. Afinal, será que é possível erigir um observatório em meio à irredutibilidade múltipla dos discursos pós-modernos? Não sofre “o estado da cultura” justamente da falta de um campo neutro?

Talvez as latas de Warhol sejam um mau exemplo. Poderíamos dizer que elas ainda são pinturas, que têm por motivo latas ordinárias. Afirmaríamos o objeto de arte então pela técnica: é arte por se tratar ainda de pintura. Sem dúvida, à pintura interessa o problema do motivo: pensemos nelas por num instante como naturezas-mortas. Mas de qualquer modo uma questão tão fundamental quanto a da repetição se impõe com essa obra: a questão de que existe uma relação entre o objeto de arte e o restante dos objetos, e isso, por sua vez, não tem nada de óbvio. Mesmo que essa relação já estivesse implícita na arte pré-moderna, é na situação-limite de indiferenciação entre os termos da relação que a própria relação fulgura. Se na pop art é possível dizer que mercadoria e obra de arte coincidem, encontramos aqui inesperadamente uma obra de arte que é capaz de manter uma diferença mínima da sua contraparte, a mercadoria. Porém, se assim é possível criticar o sistema capitalista a partir da década de 1960, as latas de Warhol certamente não o fazem simplesmente como paródias. De onde então a obra extrai seu poder crítico se não de um solo resguardado de crítica? Ao se colocar como obra cujo estatuto de arte não inspira muita confiança, ela é capaz de nos acenar com a ideia de um pastiche radical: uma cópia de uma cópia sem original. [4] Atentemos logo à precisão irônica das palavras do artista: ser não original difere de não ser original. [5] 

Portanto, a arte que chamamos de contemporânea exige-nos, como um campo singular de discurso, considerações de ordens lógica e filosófica. Arthur C. Danto, como frequente comentador da arte a partir dos anos 1960, foi capaz de sumarizar num episódio a mudança ocorrida na história da arte com os procedimentos de Warhol:

À parte alguns irrelevantes murmúrios de desaprovação, a Brillo Box foi prontamente aceita como arte. Mas a pergunta que mais incomodava era por que as caixas de Warhol eram obras de arte enquanto suas contrapartidas banais, guardadas nos depósitos de supermercados por toda a cristandade, não eram. Claro que havia diferenças óbvias: as caixas de Warhol eram de compensado e as outras de papelão. Mesmo que fosse o contrário a questão filosófica permaneceria inalterada, restando a opção de que diferenças materiais não seriam realmente necessárias para distinguir a obra de arte da coisa real. Aliás, Warhol exercitou essa opção com suas famosas latas de sopa Campbell’s, simplesmente tiradas das prateleiras dos supermercados onde compramos nossas sopas. Mas mesmo que ele as tivesse laboriosamente modelado à mão, num invulgar exercício da arte da funilaria – latas confeccionadas manualmente com tanta perfeição que não se distinguiriam do artigo fabricado –, Warhol não as teria feito subir um único degrau na categoria de arte em que já se situavam. (Danto, 2005, p. 25) 

O problema da relação aparece aqui mais uma vez à luz da indistinção: como se a lata de sopa Campbell’s mesmo na prateleira do supermercado pudesse ser uma obra de arte, mesmo que ninguém a notasse como tal. A pop art de Warhol é capaz de levar às últimas consequências o problema da obra da arte em si – daí ela extrai seu poder corrosivo. Vemos agora retroativamente que as pinturas de latas de sopas Campbell’s não são apenas pinturas, ou melhor, não são arte por serem pinturas. Nelas o problema da autorreferencialidade já está em potencial: como se uma pintura de uma pintura da lata de sopa Campbell’s pudesse ser ela mesma uma nova obra. Para Danto fica claro que a arte não pode ignorar a relação que seus objetos mantém com os demais. Consequentemente, como analisar os fenômenos não artísticos a partir daí?

Podemos admitir, apesar de tudo, que a tensão entre o campo da arte e os demais campos não estreia no nossos dias. Afinal, postular um objeto de arte indiferente do objeto comum não é retroceder a tempos pré-modernos, quando a obra de arte – independente e propriamente dita – ainda não havia? Ao contrário: só podemos ver historicamente as tentativas de reabilitar o mundo passado indiferente à categoria “arte” ou a obra de arte absolutamente distinta por seus dotes artísticos como impossibilidades lógicas. Em meados da década de 1960, o gesto de Warhol tem força por demonstrar que a arte que prescinde de qualquer elemento artístico se torna um ponto a partir do qual não há retorno. A conclusão temporária é de que é impossível copiar um gesto sem que a cópia se torne um novo gesto, passível, por sua vez, de uma nova cópia.

De Warhol a Duchamp

Não seriam os readymades antecedentes imediatos dos objetos de arte que não precisam se parecer com objetos de arte? Deveríamos então entendê-los como manifestações do esgotamento do “modernismo canônico” já na década de 1910?

Digamos por ora apenas que os readymades são fruto de um movimento preciso de apropriação e exposição. A roda de bicicleta de Duchamp, de 1913, opera como obra de arte não só por sua concretude, mas também fundamentalmente por ser tratada como obra: ela é de certo modo uma obra que contém em si mesma o seu próprio contexto. Contudo, para que isso seja possível, é preciso ainda admitir dois protagonistas nesse contexto: o artista e o público. [6] 

É possível afirmar, entretanto, que já aqui o objeto de arte possui nada de artístico? Imaginemos o caso contado por Fernand Léger da visita feita com Brancusi e Duchamp a uma exposição da indústria naval em 1914. Diz ele, numa entrevista à revista Cahiers d’art, que diante de uma hélice de navio Duchamp perguntou entusiasmado a Brancusi se ele seria capaz de produzir algo semelhante, e este o sorriu e se afastou junto de Léger, enquanto Duchamp permaneceu parado diante da hélice.

O que manteria o público diante dessa mesma hélice? Não apenas a relação entre objeto de arte e objeto comum está expressa, mas a rigor, nos readymades ainda mais está em jogo: a imediatidade de um fruir. Afinal, por que a hélice não pode ser apreciada por si só? É a experiência do público que enfraquece os limites da relação que estudamos até então, destronando a matéria, o cânone, o estilo ou a técnica como fatores determinantes de uma obra de arte.

Nos readymades de Duchamp temos o prenúncio de uma obra de arte mais radical. Nossa trajetória até aqui nos diz que essa questão só pode ser devidamente vislumbrada retrospectivamente – as caixas de Warhol nos fazem pensar que a roda de bicicleta ainda não é suficientemente tautológica. Arrisquemos dizer que como obra de arte ela ainda não é tão-somente ela mesma; ela ainda é também o índice de um gesto de apropriação e o motivo de um fruir. A roda de bicicleta expõe a si mesma e o circuito de arte que assim se autodetermina.

Uma tautologia, portanto, ainda não é uma tautologia. A obra de arte ainda depende de um critério que lhe é externo, e que compartilha com outros objetos: a capacidade de suscitar determinada atenção dos protagonistas. Mas nas prosaicas caixas de Warhol não há nada de aparentemente notório. Elas poderiam passar desapercebidas, ou melhor, o simples fato delas serem percebidas não recompensa seus observadores – não há o que ver. Não teríamos então chegado ao fim da história da arte, como Arthur C. Danto e Hans Belting concordam? Não estaríamos afinal vivenciando com Fredric Jameson o “desaparecimento do sentimento da história”?

Da pós-modernidade à modernidade

Arrisquemos dizer que o que há de historicamente inédito nas obras de Warhol é que agora, pela primeira vez, nem mesmo a cópia precisa mais se parecer com uma cópia, e isso o original por si só não teria sido capaz de fazer. Foi necessário que a obra de arte sofresse o dilema do pastiche, para que a própria noção de originalidade fosse superada. Portanto, a questão é saber se podemos viver com uma arte não original, e se isso é aceitável, o que significa a partir daí qualquer crítica da arte.

O mundo agora tem que acomodar do mesmo modo a caixa de Brillo, a cópia da caixa de Brillo, e a cópia da cópia da caixa de Brillo. Pensemos que se a caixa de Brillo do artista Mike Bidlo, em 1995, é uma espécie de falso Warhol, [7] uma caixa de Brillo “original” da década de 1960 é agora um Warhol Warhol. O humor aqui não é como um pastiche de um pastiche? Assim, por uma estranha dialética, uma caixa de Brillo é uma caixa de Brillo, mas tão-somente porque uma caixa de Brillo não é tão-somente uma caixa de Brillo. Em menos palavras: a caixa de Brillo mantém uma relação com o restante dos objetos ao manter uma relação consigo mesma. A objetividade do fenômeno abala-se: a diferença mínima que a caixa de Brillo mantém de si mesma é dada subjetivamente. Somos capazes de tomar o mesmo objeto por obra de arte ou caixa de Brillo – a caixa de Brillo é em si e para nós. [8] O paradoxo do objeto que mantém uma diferença mínima em relação a si mesmo nos parece inaceitável apenas porque nós não nos colocamos, por assim dizer, na conta do objeto: é assim que Danto “prontamente as aceita como obras de arte”.

Nossa última hipótese é, portanto, de que na pós-modernidade temos a chance de encarar o problema lógico da tautologia em termos absolutamente históricos. Essa franca contradição em termos na verdade nos é estranhamente familiar: ela já está expressa no designativo “pós”. O pós-modernismo e a pós-modernidade exigem, a cada passo, a presença de um modernismo e de uma modernidade respectivamente – o prefixo funciona neles como uma espécie de negação que afirma. Logo fica claro que a relação entre dois termos de uma afirmação só pode ser devidamente problematizada – isto é, como relação independente dos relacionados – numa tautologia. Nas palavras do filósofo Slavoj Žižek,

[…] os dois termos em uma tautologia não estão no mesmo nível: a primeira ocorrência do termo é um significante enquanto a segunda ocorrência é um significante contido no significado. Na sentença “um judeu é um judeu”, espera-se que, após a primeira ocorrência (“um judeu é…”), seja dada uma explicação do seu significado, uma definição do termo, uma resposta à pergunta “o que é um judeu?”; mas, quando se tem o mesmo termo repetido, essa repetição significante gera o espectro de um X inefável, além das palavras. (Žižek, 2011, p. 68. Tradução nossa) 

Não é justamente como X inefável que interpretamos o estatuto de obra de arte conferido às caixas indiscerníveis de Brillo? Se descrevemos o pós-modernismo “não por ele mesmo, mas pelo próprio modernismo que ele visa a desbancar” (Jameson, 1993, p. 26), não podemos formulá-lo como modernismo mais X? Será que o espectro da arte contemporânea que nos assombra poderia ser expresso como objeto de arte = objeto + X?

Esse é o sentido histórico intrínseco à tautologia: ao imitar, seja o passado seja o presente, o fazemos como segunda ocorrência do termo. Somos o significado que contém em si o significante: por isso a volta à “raiz moderna” (Berman) de certo modo cria a própria raiz que pretende recuperar. Quando dizemos moderno é moderno, dizemos moderno após moderno.


Notas

  1. "A primeira frase do texto “O pós-modernismo e a sociedade de consumo”, de Fredric Jameson, é um sintoma dessa ausência de consenso: “O conceito de pós-modernismo não é amplamente aceito ou sequer compreendido nos dias atuais” ^
  2. No pastiche, então, o solo neutro é deslocado para algum outro lugar, talvez com intuito de que se preserve ao menos o seu estatuto. Não é como se precisemos acreditar que algum momento alguém acreditou estar fazendo apenas uma paródia? ^
  3. A pista para supor que as obras de Andy Warhol extrapolam os limites impostos pelo termo pop art foram dadas pelo filósofo e crítico de arte Arthur C. Danto, que deixa escapar em seu livro Após o fim da arte sua insatisfação com o termo: “Em minha opinião, a causa da mudança [dentro da história da arte] foi a emergência da um tanto desgraçadamente nomeada pop art; novamente em meu ponto de vista, o movimento de arte mais crucial do século”. ^
  4. Seria como dizer que a mercadoria não é criticável, simplesmente porque não há nada a criticar – ela não existe por si mesma, e sua origem permanece um mistério. Karl Marx nomeia de fetichismo esse mistério da mercadoria. Ele lembra-nos que “à primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa óbvia, trivial”, mas após sua análise ela se revela “uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e de caprichos teológicos” (Marx, 2006, p. 67)^
  5. Em sua Lógica, Immanuel Kant explica a diferença qualitativa entre juízos que são “ou afirmativos, ou negativos, ou infinitos. No juízo afirmativo, o sujeito é pensado sob a esfera de um predicado; no juízo negativo, ele é posto fora da esfera do último; e, no infinito, ele é posto na esfera de um conceito que fica fora da esfera de um outro” (Kant, 2003, p. 123)^
  6. “Resumindo, o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador” (Duchamp, 2008, 74)^
  7. Ver imagem “Not Andy Warhol (Brillo Box) (1995), por Mike Bidlo” em Arthur C. Danto, 2006, p. 2. ^
  8. Essa formulação está no cerne do conceito de fenômeno para Hegel: “Acontece assim à consciência que aquilo que precedentemente era para ela o em-si não é em-si, ou era em-si somente para ela(Hegel, 1974, p. 54)^

Bibliografia